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O chá da folha de coca é milenar

O chá da folha de coca é milenar

MONTEZUMA CRUZ*

Folhas de Coca são vendidas nas ruas, na Capital, La Paz, e em cidades bolivianas - Foto Agência Boliviana de Comunicação

Coca não é cocaína. Esta advertência está presente em um mural no centro de La Paz, Capital boliviana, constatou o jornalista Altino Machado, que decidiu passar o seu aniversário nos Andes. Há mais de 4.500 anos as folhas de coca são utilizadas por indígenas da América do Sul, principalmente em rituais religiosos. A aproximadamente 3.650 metros acima do nível do mar, La Paz possui um clima subtropical de terras altas incomum, com verões chuvosos e invernos secos.

No Brasil, onde a desinformação se junta ao preconceito, essa diferença passa despercebida em escolas, organismos policiais e, incrivelmente, dentro dos próprios governos. É assim também em outros países.

A folha de coca não é droga, mas alimento. Segundo estudos científicos, tão bom que possui boa quantidade de vitaminas e nutrientes, tendo mais cálcio que o leite, mais Vitamina A que a cenoura. Seu consumo em forma natural não causa dependência nem danos à saúde. Traz somente benefícios.

O cloridrato de cocaína, sim, é uma droga química. No entanto, notícias de grandes apreensões de cocaína ou de overdoses que levam a pessoa a óbito voltam a confundir.

“A ânsia de difamar supera a vontade de aprender”, lamenta a este repórter um funcionário da Secretaria de Justiça que estuda o comportamento de detentos punidos por tráfico.

Costumeiramente, a Polícia Militar faz campanha de prevenção ao uso de drogas nas escolas, mas evita explicações. “A cultura é boliviana, não nossa, os alunos confundiriam tudo”, comenta o mesmo servidor.

Jornalista Altino Machado viu escrito esta semana  num muro em La Paz: " Coca não é Cocaína" - Foto Facebook de A. Machado

Ainda nos anos 1980, o jornalista Nelson Townes de Castro, de Porto Velho, cobriu uma missão de marines americanos na região do Chapare – praticamente, a destruição de lavouras de coca. Ao retornar, levou um saco cheio de folhas para o Palácio Presidente Vargas (ainda sede do Governo de Rondônia), e na sala do cafezinho uma bondosa zeladora preparou o chá.

Servido a diversos funcionários, inclusive a jornalistas, que repetiram xícaras à vontade, mesmo assim o chá segue até hoje estigmatizado.

Em 2011, visitando Cuzco e Machu Picchu, com minha filha médica, Vânia de Lourdes, observei que o chá das folhas de coca é servido no desjejum e as pessoas também podem bebê-lo nas portarias de hotéis, pensões e albergues. Bules cheios e xícaras estão sempre à disposição em mesas bem ornamentadas. Afinal, ele é tradicional das culturas andinas.

A cocaína é o principal alcaloide do arbusto Erythroxylon, lembram as pesquisadoras Luciana Signor e Maristela Ferigolo, em estudo na Unicamp. “Existem cerca de duzentas espécies, mas apenas 17 delas são utilizadas para extração de cocaína, sendo o principal gênero a Erythroxylon coca. O arbusto é encontrado ao leste dos Andes e acima da Bacia Amazônica. É cultivada em clima tropical e altitudes que variam entre 450 m e 1800 m acima do nível do mar.”

O que diz Altino

No Facebook, Altino Machado, que mora em Rio Branco (AC), comenta: “Março é um mês de renovação, e reservei a primeira semana para celebrar meu aniversário de uma maneira única: enfrentando o desafio da altitude em La Paz, a Capital mais alta do mundo.

La Paz: tradição milenar no uso da folha da coca para um chá que alimenta - Foto Altino Machado

A cidade boliviana, com seu verão chuvoso, frio e úmido, é um local emblemático para testar a resistência do corpo, da mente e do coração.

Percorri os arredores da cidade de táxi, ônibus, barco e a pé, descobrindo um entorno vasto, belo e histórico que me deixou sem fôlego. E não foi apenas a altitude que me tirou o fôlego, mas também o povo, a beleza e a riqueza cultural da região.

Os sintomas do mal da altitude foram moderados: uma leve dor de cabeça, falta de ar, cansaço e, em um único dia, formigamento nas mãos e nos pés que me fez lembrar da minha própria vulnerabilidade.

Ambulantes La Paz - Foto Altino Machado

Tudo isso debelado pelos poderes curativos da folha de coca. Aliás, vi num mural da cidade uma máxima: “Coca não é cocaína.”

Foi minha vulnerabilidade que me permitiu apreciar mais uma vez a grandiosidade de La Paz e sua gente. A Cidade do Céu, com sua mistura única de culturas e paisagens, é um lembrete de que, mesmo nos lugares mais inóspitos, há beleza e força espantosas para serem encontradas.

Infelizmente, por desinformação e preconceito, viramos as costas aos nossos hermanos. Como diz o poeta Beto Brasiliense: viemos também dos Andes.”


UM POUCO MAIS

● Entre os principais benefícios do chá destacam-se: a redução da fadiga, aumento da concentração e alívio de dores de cabeça. O chá de coca também possui propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias. No entanto, o consumo em excesso pode levar a efeitos colaterais como insônia, ansiedade, aumento da pressão arterial e dependência. 

● O cloridrato de cocaína é uma substância química que se extrai da folha de coca através de processo químico, no qual são usadas uma enorme quantidade de folhas e mais uma grande quantidade de gasolina, ácido clorídrico, entre outros produtos. O composto isolado vira droga utilizada pela indústria farmacêutica e por dependentes químicos, podendo causar vício e danos à saúde.

● Apesar de ser legal em alguns países, o chá de coca é ilegal em outros, como nos Estados Unidos, onde a Igreja Nativa obteve há décadas o direito ao uso do peiote em rituais religiosos, e as "religiões da floresta brasileira" (UDV, Santo Daime, Barquinha, entre outras), da mesma forma, com o chá ayahuasca (ou hoasca), desde a decisão histórica e unânime da Suprema Corte Americana, em 2006.

● No caso das folhas de coca, a concentração de cocaína é inferior a 1% e, dependendo da espécie, sequer ultrapassa 0,2%. Ela é o único alcaloide psicoativo da planta e, devido à baixíssima concentração, seus efeitos não são sentidos pelo simples consumo da planta em seu estado natural.

● As folhas são usadas com fins medicinais e para amenizar impactos do ar rarefeito desde tempos ancestrais. (Lory Aguiar, em "Poder dos chás para a saúde").


Texto anterior - Cientista que ajudou a Madeira-Mamoré a combater doenças endêmicas morreu infeliz (3 – final)


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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

Cientista que ajudou a Madeira-Mamoré a combater doenças endêmicas morreu infeliz (3 – final)

Cientista que ajudou a Madeira-Mamoré a combater doenças endêmicas morreu infeliz (3 – final)

MONTEZUMA CRUZ*

Em suas missões no Rio de Janeiro, o cientistas sentiu a ingratidão popular: nem sempre o bem é aceito por pessoas teimosas; isso acontece também no País, desde a Covid-19 ( Foto acervo Fiocruz)

Deve ter sido muito doloroso para a família do médico e cientista Oswaldo Cruz vê-lo tão triste antes de morrer, em fevereiro de 1917, depois de conseguir pôr fim à febre amarela, controlar a peste bubônica e a varíola. Em 1902 ocorreram cerca de mil óbitos no Rio de Janeiro, e dois anos depois, apenas 48. Cruz se foi aos 45 anos, frustrado com a política da época, traumatizado e infeliz, conta o médico paraense Ary Tupinambá Pena Pinheiro em seu livro Viver Amazônico, editado em 2000. 

Em 1912, Cruz, paulista de São Luiz do Paraitinga, concluía um relatório com 20 recomendações profiláticas para construtores da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a mais isolada do Planeta naquele início de século.

Doutor Ary, partícipe de importantes capítulos na história dos velhos territórios federais do Guaporé e Rondônia, explica um deles: “Quando a companhia americana May, Jeckyll & Randolph iniciou a construção da Madeira-Mamoré em 1907, cumpria um dos itens do Tratado de Petrópolis, assinado em 17 de novembro de 1903, obra de José Maria da Silva Paranhos, o hábil Barão do Rio Branco, no governo de Rodrigues Alves.”

No Museu da Madeira-Mamoré, em Porto Velho, a lembrança do trabalho de Carlos Morsing

A companhia norte-americana não preparou com antecedência a região onde rasgou a floresta para assentar trilhos, o que resultou na mortandade entre as primeiras levas de trabalhadores de diversas partes do mundo.

Conforme frisa Ary, alguns deles tinham experiência na construção de ferrovias em Cuba, nas zonas pantanosas da Guatemala e na abertura do Canal do Panamá, onde havia situação semelhante à de Santo Antônio do Rio Madeira.

“Ainda estava viva na mente de todos a lembrança dos sucessivos fracassos das empresas que tentaram construir a ferrovia e malograram, fugindo daqui, inclusive as Comissões Técnicas de Carlos Morsing e Júlio Pinkas, de Santo Antônio.

Enfermaria do Hospital da Candelária no século passado (Foto Dana Merril)
“Nos primeiros anos de construção, os trabalhos pouco rendiam. Os trabalhadores só apresentavam produtividade nos primeiros meses. Eram atacados por várias moléstias: ancilostomíase, beribéri, disenteria, pneumonia, sarampo e principalmente o impaludismo, a ‘doença da Amazônia’, segundo o grande Oswaldo Cruz.”

A Companhia May, Jeckyll & Randolph havia construído o Hospital da Candelária em 1907, mas a inexistência de um serviço médico modelar impossibilitava aos engenheiros continuar a obra. Trouxe, então, dos Estados Unidos um hospital-modelo completo.

“Os doutores William Helmerich, Walcott, Whitaker, Walsh, Poncy, River, Carl Lovelace, sob a chefia do Dr. Belt, percorriam diariamente em automóveis de linha as turmas de construção, visitando os doentes e fazendo conduzir os casos mais graves para o Hospital da Candelária”, conta Ary.

Primeiras tentativas para o assentamento de trilhos desafiou duas empresas desistentes; trabalhadores voltam aos acampamentos picados por anofelinos; malária matou muitos deles (Foto Dana Merril)

Durante quatro anos – 1908-1911 – o registro de internamento do hospital chegou a 30.500 doentes, e as quotas anuais de quinino* importadas totalizavam duas toneladas.

“Tenho praticado continuamente, por 16 anos, nos países tropicais, e não hesito em afirmar que a região a ser atravessada pela Madeira-Mamoré é a mais doentia do mundo”, afirmava o Dr. Belt em seu relatório. Ele apurava: 30% a 50% dos auxiliares estrangeiros e 40% a 75% dos nacionais estavam inválidos pela malária.” E seu colega Lovelace espantava-se: essa doença atingia 95% dos trabalhadores.

Oswaldo Cruz ao microscópio em laboratório de Manguinhos, observado pelo filho Bento Oswaldo Cruz (e) por Burle de Figueiredo (d) (Acervo Fiocruz - 1910)

A quinização intensiva passou a ser adotada para combatê-la em suas diferentes formas clínicas, entre as quais, a chamada febre negra ou febre hemoglobinúrica (black fever).

Ary acreditava que naquele tempo já existia a hepatite a vírus, a febre amarela silvestre e a esperocthose hiteromorrágica**, cujos sintomas são semelhantes. 

“(...) Os alagadiços deixados pelas cheias do Rio Madeira eram muitos, constituindo-se viveiros de larvas de anofelinos. E a companhia construtora decidiu, então, para solucionar o problema, convidar o jovem sanitarista Oswaldo Cruz, que havia saneado o Rio de Janeiro da febre amarela e acabara de exterminar o surto dessa doença em Belém do Pará, no início do governo João Coelho.”

Cruz chegou a Porto Velho a 9 de julho de 1910, acompanhado de outro sanitarista, Belizário Pena, que o ajudara na extinção do vírus amarílico no Rio de Janeiro. Eles se instalaram no Hospital da Candelária e, durante suas permanências, percorreram 33 quilômetros da linha férrea em construção.

O médico sanitarista escreveu o relatório: “Considerações gerais sobre as condições sanitárias do Rio Madeira”, e o enviou no início de setembro de 1910 ao representante das Companhias Madeira-Mamoré e Port of Pará, no Rio de Janeiro, Carlos Sampaio. 

A repercussão na área médica foi grande: os sanitaristas Leylson Cardoso e Rubens da Silveira Brito publicaram o relatório no livro: “A febre amarela no Pará”, de autoria de ambos.

Cruz escrevia: “A vila de Santo Antônio não tem esgotos, nem água canalizada, nem iluminação de qualquer natureza. O lixo e todos os produtos da vida vegetativa são atirados às ruas. (...) O gado é abatido em plena rua a carabina e as porções não aproveitadas – cabeça, couro, cascos, vísceras etc. – são abandonados no próprio local onde a rês sacrificada, jazendo num lago de sangue. Tudo apodrece junto às habitações e o fétido que se desprende é indescritível. Sobre os organismos que vivem em tal meio o impaludismo faz as maiores devastações que se conhecem. A população infantil não existe e as poucas crianças que se veem têm vida por tempo curto. Não se conhecem entre os habitantes de Santo Antônio pessoas nascidas no local: essas morrem logo. O impaludismo, moléstia evitável, o único terror sério da região.”

O sanitarista constatava que a insalubridade na região começava em meados de maio. “Entre o máximo da enchente, de 96 metros acima do nível do mar, e o nível mínimo da vazante, de 82m, há 14m de diferença. Formam-se, assim, imensos criadouros de anofelinos a partir do início da vazante, assegurando a ação deletéria dos transmissores da malária, que se acentua de maio a outubro.”

Cruz notava que o conjunto de medidas de agressão impedia a reprodução dos mosquitos transmissores, constituindo o saneamento definitivo da zona. E recomendava a concentração de esforços para prevenir a eclosão da malária: obrigatoriamente, doses de quinino de 75 centigramas a 1 grama, todo dia, quando o trabalhador chegava do serviço.

Tal providência fora colocada em prática a partir de 1º de agosto de 1910, alterando o quadro das baixas por malária aguda. Recomendava ainda como profilaxia mecânica, a instalação de telas metálicas de proteção contra o mosquito, idênticas às da Candelária e das casas dos técnicos da Companhia, em Porto Velho.

Alimentos deteriorados provocavam infecções e intoxicações, constatava o médico sanitarista: “A base da alimentação é a carne seca e a farinha d’água. (...) Tive ocasião de conversar com um dono de seringal do rio Jacy-Paraná, que me declarou: o jabá podre não vai para o rio, tem de ser adquirido pelos seus empregados. (...) Alimentos frescos não existem. O consumo de álcool é fabuloso, apesar do preço exorbitante. Com tal regime alimentar não há organização que possa resistir às entidades mórbidas que assolam o território.”

 Ary acrescenta: “Nas casas comerciais de Belém e Manaus havia o caixeiro de solda: sua tarefa era furar as latas de conservas para atenuar os vestígios dos gases da decomposição. Conseguiam, assim, enganar os compradores.”

Quanto aos locais onde funcionou o Hospital da Candelária e o cemitério internacional, a três quilômetros do Centro antigo de Porto Velho, nos anos 1980 foi tomado por empresas imobiliárias e a própria população porto-velhense contentou-se em chamá-lo de bairro.

*O quinino é uma substância alcaloide natural encontrada na casca da árvore da quina, conhecida cientificamente como Cinchona. Essa árvore é nativa das regiões tropicais da América do Sul, como Peru, Colômbia, Equador e Bolívia. É amplamente utilizado na medicina como agente antimalárico – um dos mais antigos e eficazes tratamentos.  

**Ary Pinheiro lembra que os professores Noth e Mayer, do Instituto Tropical de Hamburgo, estudaram a hemoglobinúrica palustre, concluindo que essa forma clínica da malária era provocada pelo excesso da aplicação de quinino, entretanto, em 1942, durante a 2ª Guerra Mundial, o médico Gellevardini, do exército colonial inglês, provou o contrário, na Argélia, tratando 143 hemoglobinúricos com a substância.

NOTA

Porto Velho homenageou o cientista, dando seu nome à principal policlínica do estado. No Rio de Janeiro, a Fiocruz – uma das instituições responsáveis por tomar a dianteira na produção de vacinas contra Covid-19 em território nacional – recebeu o nome em homenagem à trajetória do médico, que fundou e dirigiu o órgão público no fim do século XIX. Na mesma época, surgia em São Paulo o Instituto Butantan, fundado pela mesma equipe de Oswaldo Cruz, também com o objetivo de combater as epidemias que estudavam.

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).






De cada 60 homens que partiam, dez morriam e 20 ficavam doentes; libras de ouro circulavam em Santo Antônio (2)

De cada 60 homens que partiam, dez morriam e 20 ficavam doentes; libras de ouro circulavam em Santo Antônio (2)

MONTEZUMA CRUZ*

 Batelão cheio de borracha rio Acreano - Foto: Biblioteca IBGE

Quando o nível do rio permitia, o transbordo obedecia à correnteza nas cachoeiras Jirau, Ribeirão e Teotônio, no Rio Madeira. Santo Antônio, via circular libras de ouro. Já em Belém a borracha fora incluída na pauta das exportações desde 1824, no valor de 4.500 réis por arroba, conta o médico, etnólogo e botânico Ary Tupinambá Penna Pinheiro. Réis era a moeda daquela época. 

Em 1874 o valor exportado já era de 9.495 contos; em 1878 de 10.153 contos, valendo a libra peso 40 centavos de dólar nos Estados Unidos e 1 sh, 8 d na Inglaterra. Com a guerra franco-alemã, que começou em 1872, abaram-se os preços, mas se revigoraram ao final.

Ary Pinheiro (1º à esquerda) navegando pelo rio Guaporé - Foto: Arquivo familiar

Nesta segunda parte das lembranças do transporte pelo Rio Madeira, antes da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, revivemos no Varadouro parte das crônicas amazônicas de Ary Pinheiro, publicadas no livro “Viver Amazônico.”   

Conta o doutor Ary:

No ano de 1866, período da Guerra do Paraguai, o Brasil tinha interesse na ligação de Mato Grosso ao oceano Atlântico, entrando em entendimentos com a Bolívia, que também não tinha saída para o mar. Em 1861, o general Quentin Azevedo já aventava a hipótese de uma ligação férrea apoiada pouco depois pelo engenheiro Silva Coutinho, o que resultou num tratado, dia 7 de março de 1867.

Assinado na Bolívia, esse tratado permitia aos bolivianos navegar no Rio Madeira e seus tributários, surgindo em razão disso Madeira-Mamoré Railway Co e o Coronel Church, seu concessionário, já mostrando o interesse no transporte e comércio da Hevea, tanto brasileira como boliviana.

Nicolas Suarez, na história conhecida por "rei da Goma" - Foto: arquivo familiar

A firma inglesa Public Works mandou um grupo de engenheiros e técnicos para começar a construção no dia 6 de julho de 1872, os quais abandonaram todo o equipamento com poucos meses de trabalho e se retiraram. Church contratou uma firma americana, a P & T Collins, que também abandonou a empreitada.

Depois de assinado o Tratado de Petrópolis, numa concorrência primeiramente ganha por um brasileiro e depois transferida para Parcival Farquhar, em 1907, chegou a empresa norte-americana May and Randolph para finalizar a construção em abril de 1912, em Guajará-Mirim, com 364 quilômetros de extensão. Foram suspensos o trecho de 90 km entre Guajará-Riberalta, em solo boliviano, e a ponte sobre o Rio Mamoré, constantes do referido Tratado.

Mas nesse período os seringais estavam trabalhando intensamente e era necessário escoar o produto, e o caminho era o Rio Madeira, com suas cachoeiras. Villa Bella, na confluência dos rios Beni e Mamoré, origem do Madeira, no começo do século tinha 10 mil habitantes e três jornais. 

A maior renda alfandegária era lá, tanto que no primeiro ano deste século o chefe da alfândega era o vice-presidente da Bolívia, don Lucio Pereza Velazco, também no comando boliviano com referência ao problema acreano.

A Casa Suarez tinha sua própria frota de embarcações, mas a borracha era tanta que eles também terceirizavam. Um freteiro conhecido foi don Ascencio B. Dorado, que viajava de Villa Bella a Santo Antônio.

Os batelões, assim chamadas as embarcações feitas de madeira itaúba eram de um porte médio para 1.500 ou 1.600 arrobas, representando aproximadamente 25 mil kg. A carga, no porto de Villa Bella, era feita pelos estivadores que, após pesá-las na alfândega, soltavam para que elas rolassem e caísse, na água, de onde eram embarcadas.

Levavam tudo na viagem. Além da borracha carregavam telas encauchadas e defumadas como tendas, garrafas de sal, caixas de velas, charque e farinha. Tinham 12 remadores, dois proeiros e o piloto no leme, além de quatro rifles Winchester 44 e farta munição.

A viagem levada de dez a 15 dias, pois era a favor da correnteza. Quando o nível do rio permitia só faziam transbordo em três cachoeiras: Jirau, Santo Antônio e Teotônio. Nas outras 16 menores, ou eram atravessadas diretamente, ou aliviavam a carga. A carga de descida, quase em sua totalidade borracha, não feria as costas dos homens quando tinha que ser carregada, mas a de subida, quase toda de caixas pesadas com reforços de ferro, era o terror dessa gente.

Tão eclética era a carga que até pianos de cauda foram transportados por essa via. Chegando a Santo Antônio eram entregues aos destinatários ou diretamente aos barcos no porto. A estada era a menor possível, pois sempre havia passageiros, quase todos estrangeiros, que carregavam caixas retangulares de madeira, com dobradiças de peltre e cheias de saquinhos com duzentas moedas de libras esterlinas em ouro. 

Eram os famosos “cunhetes de libra” com mil libras cada, pesando de outo, 14g. A subida, com a metade da carga, de descida demorava 60 a 90 dias, tendo até “expressos” que viajavam mais rápido, só com passageiros, embora sujeitos a ataques de índios.

Não existiam ladrões, pois a punição para o roubo era só uma: não tinham para onde fugir. No retorno, de 60 homens que partiam, pelo menos dez morriam e 20 ficavam doentes. As bagagens eram religiosamente entregues às viúvas, com o pagamento completo da viagem. Somente o corpo ficava para apodrecer nas barrancas do rio, em cova rasa.

Segundo relata o historiador boliviano Wilson Michel, o conhecido “Rei da Goma”, Nicolás Suárez Callaú, nasceu em Santa Cruz de La Sierra em 1851. Ele era o caçula de oito irmãos concebidos da união de Rafael Suárez Arana, descendente direto de Lorenzo Suárez de Figueroa, governador espanhol de Santa Cruz que chegou àquelas terras em 1580, e Petrona Callaú Vargas. 

O mais velho da linhagem, Pedro Suárez Callaú foi o primeiro a se mudar da região de Santa Cruz de Portachuelo para o noroeste do país em meados da década de 1850. “Ele fundou a Casa Suárez na pequena cidade de Reyes, uma empresa criada para a exportação de cascas. Diante do sucesso do empreendimento em crescimento, seus irmãos mais novos o seguiram e se estabeleceram no departamento de Beni, criado nos antigos territórios dos Gran Moxos, terra de mitos e lendas como a dos Gran Paitití; com a participação deles, a Casa Suárez diversificou seus negócios e começou a exportar borracha.”

Ainda, o doutor Ary: 

Para alívio dos patrões, com a chegada à movimentada Vila Murtinho, Km 319 da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, essa epopeia foi abandonada, mas os preços do frete cobrados eram tão altos que, após a 1ª Guerra Mundial e o declínio do valor da borracha, algumas pessoas se arriscavam na descida do rio, levando seu produto. Mas voltavam de trem.

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

Do terno de borracha à navegação: histórias do Doutor Ary, antes da Madeira-Mamoré (1)

Do terno de borracha à navegação: histórias do Doutor Ary, antes da Madeira-Mamoré (1)

MONTEZUMA CRUZ*

FOTO: Álbum familiar 
O médico, botânico e etnólogo Ary Tupinambá Penna Pinheiro é um dos célebres nomes da história rondoniense desde o velho Território Federal do Guaporé. Culto, generoso, de atitudes políticas firmes e claras, um combatente do vacilo. Deveria ser lido e interpretado nas mais de quatrocentas escolas da rede pública estadual. Fica, aqui, a sugestão à ilustre e atenciosa secretária estadual de educação, Ana Lúcia Pacini.

Contam-se nos dedos quem tenha lido alguma de suas obras. Um dia ganhei de presente de sua filha, professora Yêdda Borzacov Pinheiro, o livro “Viver amazônico” (Amazon Chronicles). Hoje publicamos a primeira de uma série a respeito dele, primeiramente, rememorando o transporte pelo Rio Madeira antes da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

FOTO: Frank Néry - SecomRO
O autor menciona os célebres especialistas e industriais Goddyear e Dunlop, e ainda, do pioneiro em pesquisas, o boliviano Santos Duran; e da paraense dona Vitória, a primeira seringalista – todos desconhecidos nas páginas de nossos jornais e nos livros escolares.  

Ele narra brilhantemente capítulos importantes dessa história, desde 1800. Dá gosto “viajar” por essa história. Até parece os encontros que tínhamos com o mestre no quintal de sua casa, perto do Teatro Banzeiros em Porto Velho. Normalmente, naquelas narrações, ele tirava nomes do anonimato.

Ary deu aulas de História da Civilização, Matemática e História Natural na Escola Normal Carmela Dutra, mas não recebia salário de professor. “Ele era um humanitário, pagava para lecionar, sem jamais reclamar”, dizia o historiador Esron Penha de Menezes nos anos 1980.

Conta o doutor Ary:

Quando os espanhóis chegaram ao Novo Mundo viram uns produtos excepcionais: “bolas de brinquedo” que quicavam. Observaram alguns indígenas deitados à sombra de certas árvores que deixavam escorrer sobre si um suco viscoso. Pouco depois, o líquido formava uma película que os índios destacavam do corpo e começavam a enrolar como se faz um fio num novelo.

Os espanhóis perguntaram a serventia do brinquedo e os índios começaram a lançar a bola um para o outro e deixando-a pular no chão.

La Condamine, explorador francês, em 1735 procurou a borracha e achou no Pará, sendo que a primeira manufatura de um objeto foi um terno, oferecido em 1759 pelo governador do Pará ao rei de Portugal.

Em 1770, o inglês Naime junto à borracha, alume e esmeril, fazendo uma pequena barra que cancelava a escrita no papel. Ali começou a procura pela borracha, mas somente após Charles Goodyear descobrir a vulcanização, em 1839, foi que realmente se industrializou, chegando ao seu auge quando o médico escocês Dunlop inventou o pneumático.

Desde 1850 que a borracha é explorada no Rio Madeira. Diz a lenda que a primeira seringalista foi uma mulher, dona Vitória, que premida de débitos em Belém do Pará, foi para o Madeira extrair borracha. O Seringal Assunção tem seu título definitivo emitido por Manaus, Amazonas, em 1873, sendo que constam nos impostos pagos, arrecadações de 1860. 

Naquela década, o peruano Chaves fez demarcar seu seringal nas cabeceiras do Rio Jacy-Paraná, abrangendo mais de um milhão de hectares, e o escriturou em Cobija, Bolívia, pois no seu critério era a vila mais próxima.

Esse erro de avaliação – considerar terras brasileiras como bolivianas – fez perder aos seus herdeiros todos os direitos que, por localização, poderiam ter. Muitos bolivianos tinham seringais no Brasil, principalmente perto de Vila Murtinho, na confluência do Rio Mamoré com o Rio Beni, formando o Rio Madeira.

Guajará-Mirim, na margem esquerda boliviana, em 1893, tinha três casas – de Leonor Castro e dos irmãos Manuel e Memésio Jordan; e ninguém do lado brasileiro.

O pioneiro nas pesquisas de borracha do Guaporé foi o boliviano Santos Duran na década de1860, com experiência adquirida nos seringais do Madeira, em sociedade com Augusto Mercado e o suíço Santiago Dutua. Mas a produção não tinha relevância, pois o estabelecimento da Mesa de Renda pelo Governo de Mato Grosso, em Santo Antônio do Madeira, somente se deu em 25 de janeiro de 1873, elevada à categoria de Coletoria somente em 7 de julho de 1891.


*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

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No próximo texto: a cotação da borracha, a Guerra do Paraguai, a notável Casa Suarez e os “cunhetes de libras”

Indígenas isolados, cuidem-se

Indígenas isolados, cuidem-se 

Montezuma Cruz*

 Frente Etnoambiental divulga foto de indígenas recém na T. I. Massaco 

O País e o Mundo dão voltas, Rondônia cambalhota. Não faz muito tempo, debatia-se calorosamente por aqui as consequências do famigerado marco temporal, pelo qual povos indígenas deveriam provar sua existência. Constrangedora, horripilante, injusta, essa situação me fez lembrar o coronel Zanone Hausen, que pretendia adotar seus critérios de “indianidade” na Funai dos anos 1980.

Por se tratar de um desastroso risco de apagar a história brasileira, notadamente a amazônica, deixo ao leitor a pesquisa na internet para saber o resultado daquela maléfica ideia de Hausen. 

A Diretoria de Proteção Territorial da Funai e sua Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé e Madeirinha-Juruena divulgaram a presença de indígenas isolados na T.I. Massaco em Rondônia, na região do Guaporé, e na área Kawahiva do Rio Pardo, em Mato Grosso.

Frente Etnoambiental divulga foto de indígenas recém na T. I. Massaco 

Quem são, e como vivem, ainda neste semestre saberemos. Certamente conhecem a seringueira, a mandioca e as plantas medicinais.

Segundo o coordenador da Frente, Altair Algayer, existem dados da forma como esses indígenas vivem e se desenvolvem. O nomadismo volta à pauta jornalista e antropológica, pois, entre outros aspectos, a Funai consta a aptidão desses indígenas pela caça e coleta, mantendo habitações tradicionais.

O coordenador da Frente Madeirinha, José Candor, explica – especialmente aos inflexíveis incrédulos, entre eles, alguns expansionistas agrícolas ou madeireiros mal-intencionados, que o objetivo das recentes expedições é a busca de informações para a execução de políticas públicas que protejam esses indígenas isolados. Está na Lei, é direito inalienável.

Obviamente, a notícia que corre agora o Mundo já inchou íris, pupilas e a mente gananciosa daqueles que imaginam que este estado com pouco mais de quatro décadas já teria consolidado suas políticas indigenistas. Pelo contrário, somos aquela Rondônia estranha, onde a terra indígena desperta altos interesses comerciais. Aqui, não perdoam nem os arredores do buraco onde sobrevivia um indígena Tanaru – o último de seu povo dizimado, entre Chupinguaia e Corumbiara.

No ano passado, o resultado da votação do tal marco temporal no STF demonstrou que a Constituição Federal precisa ser cumprida em todos os quadrantes pátrios, sem exceção. Se no início do século passado, o lendário Cândido Rondon defendia a vida indígena em terras ainda pertencentes a Mato Grosso, hoje constatamos que o respeito aos direitos desses povos é um compromisso ético, étnico e moral.

Por isso mesmo, a descoberta de indígenas ainda em isolamento vem demonstrar claramente que, antes da chamada “colonização de Rondônia”, esta terra “tinha donos.” Ou seja, num linguajar bem compreensível aos iminentes usurpadores, toda árvore conservada no Guaporé, todo rio e toda planta medicinal ali existentes, só estão vivos graças a esses seres isolados.

O encontro deles pelas frentes da Funai faz lembrar a reação do saudoso sertanista Apoena Meireles quando se aproximava pela primeira vez do Povo Uru-eu-au-au. Ele antevia a chegada de madeireiros e a situação de violência contra invasões.

A notícia da descoberta desses indígenas nômades em duas regiões amazônicas pressupõe novos debates. Uma das situações foi lembrada pela ambientalista e indigenista Ivaneide Bandeira, a Neidinha, da Kanindé Etnoambiental, quando comentou a proposta de parlamentares no sentido de se indenizar o setor rural “de boa fé” pelo benefício a terras indígenas em litígio e de onde muitos foram escorraçados anos atrás.

Há um aspecto importante na antropologia e ele deve ser lembrado em 2025: nenhum desses seres da floresta é nômade por diversão, mas por necessidade, e ela vem se tornando cada vez maior diante do cerco a que são submetidos.

Neidinha perguntava naquela ocasião: “Será que haverá um levantamento a respeito do que foi destruído da Terra Indígena? É porque quando fazem corte raso para a construção de curral e casas de fazenda também se destrói a natureza. Será que os indígenas serão indenizados pelas madeiras nobres tiradas, por tudo o que foi destruído? Eu defendo que haja, porque do jeito que indenizariam aquilo que chamam de benfeitorias à terra, as benfeitorias dos indígenas são a sua floresta.”

Acrescentava: “Se a pessoa tirou madeira nobre, derrubando e destruindo até igarapés, matou animais, fez um tanto de coisas, seria obrigada a restaurar tudo o que destruíram e devolver do jeito era esse ambiente aos indígenas? Eu acredito, então que tem que se pensar em indenizações dos dois lados.”

Enquanto Câmara dos Deputados e Senado Federal não decidirem pelo cumprimento da Constituição, essa batalha será tão dura quanto à normatização da exploração mineral. O ano começou, vejamos se as pautas incluirão os direitos dos povos indígenas – ao menos daqueles que implicaram a destruição do território onde viveram em paz antes de serem envenenados por arsênico, como ocorreu com parte dos Nambikwara do Vale do Guaporé.


*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).


Eles ainda falam Oro Nao

Eles ainda falam Oro Nao 

MONTEZUMA CRUZ*

Foto: Alex Leite

O mundo digital também é desfrutado por indígenas no Brasil, e Rondônia não foge à regra. No entanto, há exemplos de como ensinar e aprender sem a necessidade de ficar plugado o dia todo, algo que vem originando doenças. Algum tempo atrás, em 2016, ao visitar uma terra indígena no município em Guajará-Mirim me deparei com agradável situação. Transcrevo minha matéria:

Na sala silenciosa, onde se ouve apenas o mugido das vacas no quintal, crianças e jovens aprendem a língua Oro Nao, a mais falada pelas etnias Wajuru, Canoé, Jabuti, Macurap, Oro Nao, Oro Waran e Tupari.

Famílias desses povos, ao longo do rio Mamoré, vivem no Posto Indígena Deolinda, no município de Guajará-Mirim.

Às 10h40 do segundo dia do atendimento do barco hospital Walter Bártolo, na barranca direita do rio Mamoré, a professora Rosinete Oro Nao abriu a porta para assistirmos um pouco da aula, com a presença de quatro alunos das etnias Canoé, Jabuti, Macurap e Oro Nao.

Foto: Alex Leite

Na lousa, ela escreveu frases e indagava a cada aluno o significado de cada uma. Xi yao xita panika tomitaka, ela escreve: “Vamos ler e completar” é a tradução.

Pe’home? = Me espera

Pan ma? = Você caiu?

Xir a o xita? = Vamos estudar?

Xani’ tamana ha xina? = O Sol está muito quente.

Kaxi ma? = Você está doente?

Pe’ inai = Estou com fome

Nota-se a paciência de ambos os lados. As crianças pensam pelo menos 30 segundos antes de responder às perguntas, e a professora dá um intervalo entre uma e outra explicação, correção, ou comentário a respeito do assunto originado pelas frases.

“As crianças são a esperança da preservação”, disse a professora Rosinete, nascida na aldeia Tanajura.

Para ela, a escola pode ser fator de incentivo à revitalização de línguas indígenas.

Quando chegar a mediação tecnológica à região, com aulas por satélite, provavelmente a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) terá mais a ganhar com o aprendizado indígena.

A Escola de Ensino Fundamental Pedro Azzi, no Posto Indígena Deolinda, é uma das que conservam a língua materna. Dezesseis alunos do 6º e 7º anos aprendem oro nao no período da manhã; e do 8º ao 9º ano à tarde.

O método que une a escrita à oralidade assemelha-se ao das escolas dos anos 1950 e 1960, cujas cartilhas Sodré e Caminho Suave, as que mais venderam no País, ensinavam a formação de frases, valorizando cada letra do alfabeto.

O governador Confúcio Moura entregará neste ano (2016) mais cinco escolas em terra indígena, com professores formados pelo Projeto Açaí, da Seduc.

Crianças e jovens de Deolinda também falam o português. À tarde, o professor Erivaldo Souza Santos, formado em letras em Guajará-Mirim, dá aulas de geografia, história, português e matemática. No dia da visita, o encontramos explicando porcentagem.

Erivaldo lembra que a inclusão de uma língua indígena no currículo escolar lhe atribui o status de “língua plena”. “E aqui, ela ocupa o mesmo espaço da língua portuguesa, um direito previsto pela Constituição Brasileira”, observa.

O histórico da educação escolar indígena no Brasil revela que, de um modo geral, a escola sempre teve por objetivo integrar populações indígenas à sociedade envolvente. No entanto, línguas indígenas eram vistas como grande obstáculo para que isso pudesse acontecer, e assim, as escolas ensinavam alunos indígenas a falar e a ler e escrever em português.

Somente há pouco tempo, começou-se a utilizar as línguas indígenas na alfabetização, ao se perceber as dificuldades de alfabetizar alunos numa língua que não dominavam.

Mesmo nesses casos, assim que os alunos aprendiam a ler e a escrever, a língua indígena deixava de ser ensinada em sala de aula, já que a aquisição da língua portuguesa continuava a ser meta maior.

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).