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Cinema para garimpeiros fazia sucesso com terror brasileiro e lutas marciais

Cinema para garimpeiros fazia sucesso com terror brasileiro e lutas marciais

MONTEZUMA CRUZ*

Em Periquitos, o primeiro garimpo onde trabalhou, Nilsinho viu muito ouro em movimento. Falo de Eunilson Ribeiro, um dos personagens do meu livro Território dourado, que levou o cinema aos garimpos do Rio Madeira durante os anos 1980.  “Eu e muitos prepostos de grupos comprávamos na fonte; vi muitas vezes aviões fretados pelo Banco Central pousarem na pista do Aeroporto Belmont com milhões de cruzeiros acondicionadas em caixas de papelão”, ele conta. Essa situação antecedeu ao período em que decidiu enveredar pelo cinema 16 milímetros.

Bruce Lee um dos maiores vultos das artes marciais do mundo, foi também herói para os garimpeiros reunidos em Embaúba, Rio Madeira (foto divulgação).

Nilsinho foi ligado à empresa Pini, Andrade & Gonçalves. Este último era diretor do Banco Mercantil de São Paulo S/A e casado com a filha do banqueiro Gastão Vidigal, simplesmente o dono. A agência em Porto Velho funcionava na Avenida Carlos Gomes.

“Imagine você, eu trabalhando para o genro do bilionário...até que o gerente da agência soube disso no ato dele abonar a minha assinatura. Aí, passou a me tratar como um rei, e sempre que eu voltava ali tinha tudo à disposição, afinal, em minha conta entrava toda semana o equivalente a dez quilos de ouro” – recorda.

Nilsinho Ribeiro (e) conta sua história de comprador de ouro, operador de centro telefônico, vendedor de bolo e gerente de cinema (foto Raíssa Dourado).


Nilsinho emitia muitos cheques, e mesmo quando não tinha fundos suficientes, o banco pagava e o comunicava por telefone, acertando tudo nos depósitos seguintes.

Um longo trecho da Rua Campos Sales e outro trecho da Avenida 7 de Setembro concentravam dezenas de lojas de compra e venda de ouro, o que resultava num movimento incomum na Capital de Rondônia. “A mais famosa pertencia ao comerciante Edgar Queiroz”, opina Nilsinho.

“Eu fiz de tudo um pouco no garimpo e ele marcou a minha vida”, ele diz. Ali mesmo no Embaúba foi sócio-proprietário da empresa Dago e Nilson, um posto de gasolina e óleo diesel. Dormiam nos quartos de madeira e atendiam até de madrugada. No balcão vendiam bolos fabricados no Bar do Canto e ofereciam um serviço especial de comunicação por radiomamador modelo Yaesu que transmitia mensagens para outro aparelho instalado numa sala em Porto Velho.

Nesse lugar uma pessoa recebia o chamado do garimpo e o acoplado ao telefone que completava a chamada interurbana. “Outro sucesso, pois os garimpeiros localizavam parentes, amigos, esposas, namoradas, e o mundo ficava bem perto deles.”

Algumas histórias desse mundão amazônico ocidental antes da internet foram contadas por Nilsinho no filme documentário "Vozes da Memória", dirigido por Raissa Dourado, filha dele. (Há indicação com link, no final deste texto).

Em sociedade com Dagoberto Freitas – hoje nos Estados Unidos – e Edmilson Lacerda, o "Baleia", ele fundou o Cine Embaúba, o glamour da sétima arte para os garimpeiros nos anos 1980. Voltava de uma viagem ao Rio de Janeiro onde se inspirava no slogan: “Cinema também é cultura”, do empresário de cinemas Luiz Severiano Ribeiro. Mandou colocá-lo numa placa, fazendo ver aos garimpeiros que eles faziam parte daquele bom momento.

O ingresso custava um grama de ouro e a bilheteria faturava o tufo em todas as sessões. Os filmes vinham enlatados da distribuidora de Manaus, em aviões teco-tecos, pousando numa pista precária do garimpo Embaúba. Com o amigo sócio Dagoberto Freitas, Nilsinho adquiriu um projetor 16 milímetros, de segunda mão. Dagoberto é filho do notável engenheiro José Otino de Freitas, o idealizador do projeto do Palácio Presidente Vargas, ex-sede do Governo de Rondônia e hoje Museu da Memória Rondoniense.

Ao relento, o cinema era cercado por lona, não tinha teto, e assentava-se em um terreno de ladeira onde a posição dos bancos facilitava a visão de cada pessoa. “Compramos duas cornetas e instalamos lá no alto de uma árvore samaúma, de onde a voz do locutor Boquileo irradiava por todo o garimpo anunciando não apenas o cartaz cinematográfico, mas avisos de utilidade pública, e tocava muita música que os garimpeiros dedicavam para os amigos ou para as mulheres que os visitavam”, ele conta.

Nilsinho menciona nostálgico o nome de sua mãe, dona Jandira Gomes, esposa de Eunilson Ribeiro (pai), falecida aos 90 anos. “A tela eu fiz emendando três lençóis brancos que furtei dela, e é lógico que minha mãe deu falta e me passou uma esculhambação.”

Na estreia passou o filme "O roubo das calcinhas", uma comédia pornochanchada brasileiro de 1975 dirigido por Sindoval Aguiar e Braz Chediak. Mas, segundo Nilsinho, os garimpeiros não gostavam muito desse estilo, preferiam mesmo as lutas de Bruce Lee que também passavam nos cinemas de Porto Velho, e adoravam o ator Zé do Caixão (José Mojica Marins).

Bruce Lee, nascido Lee Gunfam em 27 de novembro de 1940, foi um artista marcial, ator, diretor de cinema, roteirista e filósofo sino-americano amplamente reconhecido por ter popularizado as artes marciais no cinema ocidental durante a década de 1970. Verdadeira lenda do esporte e da cultura pop que morreu prematuramente em 20 de julho de 1973.

José Mojica Marins, o Zé do Caixão, fez filmes os primeiros filmes de terror no Brasil, ainda na década de 1960; no garimpo tinha mais aceitação que pornochanchadas (foto divulgação).

José Mojica Marins, diretor, ator, roteirista, o conhecido “Zé do Caixão', teve tanto público quanto o comediante Mazzaropi. Personagem emblemático, ele é considerado pela crítica um dos precursores do gênero gore e do cinema de terror no Brasil.

“Foi sucesso total a exibição daquele filme chamado "À meia-noite levarei sua alma" e sua sequência: "Esta noite encarnarei no teu cadáver." Os garimpeiros se banhavam, vestiam suas melhores roupas, e iam para o cinema; o vaivém na corrutela animava o comércio do Embaúba, formado por pequenos bolichos de utensílios de alumínio e plástico, açougues, restaurantes e farmácias, a exemplo de outros ao longo do Rio Madeira.

A história desse cinema teve outras mãos em originalidade, mesmo que tenham sido arregimentadas a fórceps por Nilsinho, ao surrupiar os lençóis do guarda-roupa da própria mãe. Essa ansiedade por ganhar algum dinheiro levando a diversão ao garimpo resultou em numeroso público que, na avaliação dele, comparava-se ao das sessões da tarde e da noite nos cinemas de Porto Velho.

Livro deste autor, relatando a política mineral em Rondônia e ascensão e a queda da zona boêmia em Porto Velho.

Dona Jandira também criou Cláudia e Janari. Ela nasceu no seringal Canaã Central, hoje município de Ariquemes, e ali viveu décadas na terra herdada dos pais e que um dia foram arrendadas por um senador do Estado do Amazonas. Com isso, dona Jandira estudou em Manaus e teve esse político como padrinho.

“Minha mãe viajava de lá para cá pelo Rio Madeira, entrando pelo Rio Jamari, e para chegar ao Canaã trocava de barco perto da Cachoeira de Samuel, onde foi construída a primeira usina hidrelétrica do velho território federal”, lembra Nilsinho.

Na convivência com indígenas, dona Jandira aprendeu seus cânticos. A aventura cinematográfica dele no Embaúba.

Tudo durou enquanto pipocavam tiros de revólver e metralhadora na floresta numa disputa ferrenha entre grandes grupos e os verdadeiros donos do bamburro dourado. Grupos poderosos, apoiados pela força policial rondoniense, fizeram vários ataques às corrutelas a título de prender traficantes de drogas, assassinos, ou fugitivos da justiça de outros estados.

Findo esse período, Nilsinho se mudou para o garimpo do Teotônio, mais próximo de Porto Velho, imaginando repetir o sucesso do seu “cinema também, é cultura.” Montou o Cine Eldorado, mas se desiludiu, porque, ao contrário do distante Embaúba, os atrativos alcoólicos, alimentícios e as casas noturnas da Capital estavam a “um pulo” do Teotônio.

Toda noite eles se juntavam e iam para Porto Velho, onde encontravam restaurantes, cinema e mulheres à vontade. Pronto, ia embora o sonho empreendedor, da mesma maneira como outros sonhadores deixaram nas entranhas da memória seus pequenos comércios no Embaúba.

Antes de encerrar o ciclo do cinema, nosso personagem ainda viveu dias de euforia. Um delegado de polícia valia-se de suas relações com rufiões da prostituição para “importar” mulheres de Goiânia a peso de ouro, com estadia muito bem paga.

Antes de encerrar essa longa aventura ao longo do rio, numa noite Nilsinho e outros organizadores promoveram um show de strip-tease em clima de intenso empurra-empurra. Quando apagaram as luzes e o projetor iluminava as garotas no palco, eles se surpreenderam com os garimpeiros acendendo suas lanternas para não perder um só detalhe da dança.

“No dia seguinte, com as borocas cheias de dinheiro, a disputa entre eles foi grande: todos queriam escolher e sair com as mais bonitas, e todas elas eram bonitas”, acrescenta Nilsinho, um ser feliz com as lembranças de sua história – a história dos  garimpos do Madeira.

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Texto anterior - Vinte anos atrás, pesquisador do Museu Goeldi resgatava língua Tupi em aldeia de Rondônia

*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).


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Nota de responsabilidade
As opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição editorial deste jornal.

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Vinte anos atrás, pesquisador do Museu Goeldi resgatava língua Tupi em aldeia de Rondônia

Vinte anos atrás, pesquisador do Museu Goeldi resgatava  língua Tupi em aldeia de Rondônia

MONTEZUMA CRUZ*

 

Faz 20 anos que o linguista Nilson Gabas Júnior, do Museu Paraense Emílio Goeldi, iniciava em Rondônia seu projeto de resgate da língua tupi. Ele visitava o Povo Arara, em Ji-Paraná. Desde o velho Território Federal do Guaporé, Rondônia falou essa língua que por pouco não foi extinta. O tupi está entranhado no português de maneira irrevogável. O professor Nilson conseguia concluir sua missão em 2006, visitando os 130 indígenas (número estimado naquele período) Arara.

Professor pesquisador Nilson Gabas Júnior, do Museu Goeldi, esteve com indígenas Arara em Ji-Paraná


Por pouco essa língua não acabou, exatamente pela falta de apoio governamental e do êxito em missões das quais participam apenas altruístas iguais ao professor pesquisador Nilson Gabas Júnior. O ex-diretor do Museu Goeldi é formado em jornalismo pela PUC-Campinas, possui mestrado em linguística pela Unicamp, com ênfase em línguas indígenas amazônicas e doutorado, também em linguística pela Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara (EUA).

Há séculos, em Rondônia, a civilização indígena reinava no interior, cuja floresta tombou entre meados dos anos 1970 e por toda década de 1980, cedendo espaço a vilas e cidades que surgiram ao longo da BR-364 (ex-BR-29), BR-429, e circunvizinhanças.

Açaí, caju, jabuticaba, maracujá...

Muitos leitores conhecem alguns termos tupi. Meu amigo cuiabano, saudoso jornalista Jorge Bastos Moreno, por exemplo, assinava no jornal O Globo, a coluna “Nhenhenhén”. Tradução: ficar falando sem parar. Nhe’eng é falar.

Chorar as pitangas – pitanga é vermelho em tupi; então, a expressão significa chorar lágrimas de sangue.

Cair um toró – tororó é jorro dágua em tupi, daí a música popular “Eu fui no Itororó, beber água e não achei”.

Ir para a cucuia significa entrar em decadência, pois cucuia é decadência em tupi.

Velha coroca é velha resmungona – kuruk é resmungar em tupi.

Cutucar, palavra que vem Tupi, é verbo nos dicionários


Dos verbos que nós temos, grande parte é tupi: socar – soc é bater com mão fechada. Bater com a mão aberta é petec, daí vem peteca. Espetar é cutuc, daí cutucar; chamuscar é sapec, daí sapecar e sapeca.

Nomes de doenças, como catapora – marca de fogo, tatá em tupi é fogo.

O significado de grande parte dos nomes de lugares só se sabe com o tupi, a exemplo de bairros de São Paulo, Capital paulista: Pari é canal em que os índios pescavam, Mooca é casa de parentes, Ibirapuera é árvore antiga, Jabaquara é toca dos índios fugidos, Mococa é casa de bocós – bocó é tupi.

Em nossa fauna e flora, o tupi aparece massivamente: tatu, tamanduá, jacaré. Até nas artes ele é encontrado – vejam o famoso quadro de Tarsila do Amaral, o Abaporu, que quer dizer antropófago em tupi.

Somente as tribos indígenas sustentaram o tupi, desde os primórdios da civilização amazônica e de outras civilizações. Até o século 17, ele estava em todo o território nacional, mas o Marquês de Pombal o proibiu, em 1758.

O trabalho do professor Nilson inclui documentação do tupi em dicionário e videodocumentário. Anteriormente, outros pesquisadores do Museu Goeldi esforçaram-se para resgatá-lo.

O esforço de salvação desse idioma, sem dúvida o que há de mais brasileiro, constitui-se uma enorme conquista para Rondônia, Amazônia e o País. No início da década de 1980, quando a Funai e as polícias Civil, Militar e Federal tinham dificuldades para retirar cerca de 80 famílias de invasores de uma área do Posto Indígena de Igarapé Lourdes (habitado pelos Arara e Gavião), o então delegado-adjunto da Funai, Amauri Vieira, recorria a Brasília.


Jovens indígenas conhecem a língua Tupi pelos pais e, atualmente, por estudos universitários


Vieira denunciava aos seus superiores que a usurpação do território indígena fora comandada por políticos e comerciantes de Ji-Paraná.

Além do professor Nilson, outros notáveis pesquisadores se destacam no resgate linguístico, a exemplo do professor da USP, Eduardo Navarro, um dos responsáveis por conseguir fazer do tupi a língua indígena mais bem-documentada e preservada que temos.

Nossa língua original vem desde a chegada do navegador português Pedro Álvares Cabral à costa baiana. Foi a língua dos bandeirantes, de Tibiriçá e do cacique Araribóia – a língua da construção espiritual e política do Brasil.

Num trabalho inédito no Brasil, Navarro ensinou os índios Potiguar, da Paraíba, a falar a língua de seus antepassados. Ele formou professores indígenas, criou material didático para as crianças e resgatou obras escritas a partir do século 16 – incluindo-se aí o teatro, as poesias e a liturgia do Padre Anchieta.

Dos defensores e estudiosos dos Arara, Gavião, Karitiana, Namkikwara, Paiter Suruí, Uru-eu-au-au e Zoró, alinho os sertanistas: Apoena Meireles, Aimoré Cunha da Silva, Benamour Brandão Fontes, Amauri Vieira, Francisco de Assis Silva, José do Carmo Santana, o Zé Bel, Osman Brasil, e Osni Silveira.

Talvez os Arara e Gavião, tão vítimas do homem branco, não tivessem tempo de suplicar a salvação da sua língua. E não tiveram mesmo, porque migrantes brancos cercaram suas terras, o que lhes inquietava diariamente.

Já os Potiguar da Paraíba acalentaram o sonho de falar a língua de seus antepassados. O professor Navarro foi até lá, munido do aprendizado do tupi clássico, e o fez sozinho, com documentos do século 16 e 17, traduzidos e publicados.


Tronco Tupi entre os povos amazônicos 


O trabalho de difusão do tupi realizado por Navarro é feito em várias frentes. Ele criou a ONG Tupi Aqui, para ser um centro de referência e difusão da língua e da cultura indígenas; concluiu o “Dicionário da Língua Brasílica – O Tupi Antigo das Origens do Brasil”, prefaciado por Ariano Suassuna, com cerca de oito mil termos, editado pela Vozes.

A jornalista Paula Chagas, na época no extinto Jornal da Tarde, ouviu de Navarro que o tupi é importante para se entender a cultura brasileira. “O brasileiro já nasce falando tupi, mesmo sem saber. O português falado em Portugal diferencia-se do nosso principalmente por causa das expressões em tupi que incorporamos. Essa incorporação é tão profunda que nem nos damos conta dela. Mas é isso o que faz a nossa identidade nacional.

“Depois do português, o tupi é a segunda língua a nomear lugares no País. São milhares de nomes, que continuam aumentando. Além disso, a literatura brasileira não é só em português, é em tupi também. Um exemplo são as obras do padre Anchieta, que escreveu teatro, poesia lírica, músicas, catequese, tudo em tupi.”

“Gonçalves Dias quis recuperar isso com suas obras, como I Juca Pirama – que significa “o que vai ser morto” –, assim como José de Alencar que, ao escrever Ubirajara, Iracema e tantos outros livros, buscava encontrar o rosto do Brasil. A importância do tupi se faz notar em cada fala nossa”.

O Brasil tem dificuldades em lidar com línguas em extinção. Percebi essa situação no apelo que me fazia o padre Cassimiro Beksta, em Manaus, quando viajei para a divisa do Amazonas com o Acre e Rondônia, em 1981, a fim de conhecer os indígenas Kaxarari. “Você vai conhecer um tesouro da linguística.” Fora ele, o autor da única cartilha a respeito do modo de falar dessa gente.

No entanto, os Kaxarari falam uma língua da família Pano, semelhante ao idioma falado pelos Yaminawa, Kaxinawa, Yawanawa, Nukini, Katukina e Poyanawa, todos do Acre.

Eu era um dos editores do jornal Porantim. Padre Cassimiro orientou-me a desembarcar em Vista Alegre do Abunã e embarcar no lombo de um burro para chegar à terra Kaxarari, no Igarapé Azul. Fui, escrevi duas páginas a respeito deles, mas só vim a compreender melhor a diferença de troncos linguísticos quatro décadas depois.

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TEXTO ANTERIOR - Tem morcego no curral? Chame o Governo

*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).


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As opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição editorial deste jornal.

Tem morcego no curral? Chame o Governo

Tem morcego no curral? Chame o Governo.

MONTEZUMA CRUZ*

FOTO - Morcegos

Quero hoje falar de morcegos. O governo estadual tem profissionais competentes que tratam do assunto. Em minha fase de repórter na comunicação social, insistia com  editoras e editores, saía da cadeira e da mesa de trabalho para visitar dependências palacianas. Fiz isso durante os governos Confúcio Moura, Daniel Pereira, e até maio de 2022, com o coronel Marcos Rocha. Na função de servidor público, eu acreditava que contribuiria mais com a população rondoniense se produzisse reportagens interessantes. Enquanto "durei", apurei, escrevi e me realizei. 

Com uma pitada de nostalgia, trago hoje ao leitor o lead da reportagem publicada pela Secom em 2018:

A ligação telefônica do pecuarista de Chupinguaia, a 530 quilômetros de Porto Velho, denuncia o ataque do morcego hematófogo (Desmodus rotundus) ao gado bovino. Prontamente, a Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (Idaron) envia um veterinário para constatar a real dimensão do problema. Em 2017, as mais de trezentas lojas de produtos veterinários em Rondônia venderam 4,54 milhões de doses de vacina antirrábica. A dose (2 ml) custa apenas R$ 1, a vacinação é opcional, mas a notificação da raiva é compulsória.

Esse tipo de morcego transmite a doença ao morder bovinos, cães, gatos, búfalos, burros, cabritos, mulas, ovelhas, porcos, entre outros animais silvestres raivosos, aos quais contaminam com o vírus presente em sua saliva. Assim funciona o Programa Estadual de Controle da Raiva dos Herbívoros, voltado especificamente para capturar e estudar esse mamífero com asas, principal transmissor da raiva a esses animais.

E adiante, lembrava que os hematófagos são encontrados desde o norte do México até o norte argentino, algumas ilhas do Caribe e em regiões com altitude média abaixo de 2 mil metros. Daí, trazia o mote e o molho da Idaron, agência conhecida na Suiça e na França, onde funcionam renomados centros internacionais estudos de epizootias.

Santo da casa não faz milagre. Se raciocinarem assim, hoje e amanhã, editores (especialmente eles) e repórteres terão ótimas oportunidades de mostrar reportagens a respeito de trabalhos praticamente anônimos feitos por médicos veterinários auxiliados por técnicos e motoristas aí pelos cantões rondonienses.

O veterinário Dalmo Bastos Sant'Anna, que naquele período (2017-2018) coordenava o programa  de controle da raiva orientava: “Vacinar todo o rebanho garante a sanidade. Um animal morto em consequência da raiva, digamos, é R$ 2 mil a menos no ganho do criador.”

Catedrático, ele explicava: “Depois da primeira vacinação, aplica-se a segunda dose um mês depois e essa prática depois pode se tornar anual. Os pecuaristas devem aplicar a vacina antirrábica na mesma ocasião em que cumprirem a vacinação contra a febre aftosa.” 

Foi justamente a febre aftosa quem colocou Rondônia no mapa internacional da epizootia com saldo positivo ao longo dos anos. Para quem ainda não sabe, a Idaron cuida muito bem dos rebanhos no estado e empresta à República da Bolívia o seu apoio para controlar o gado bovino da outra margem do Rio Mamoré. 

Voltando aos morcegos: controlando-se o transmissor, diminuem os ataques, alertava Sant'Anna em nossa reportagem. Com o cuidado de respeitar a Mãe Natureza, pois, nem todo morcego está contaminado e pequena proporção tem o vírus.

A ele eu contava que havia ganho de presente um livro publicado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, contendo textos e fotos a respeito de 160 espécies de morcegos no Brasil.

E aí a conversa engatou bem, possibilitando-me levar à Redação da Secom a realidade quase invisível desse trabalho profissional que pode ser fantástico quando apoiado pela cúpula dos órgãos que fazem a vigilância sanitária animal em Rondônia, parceiros indispensáveis da Secretaria Estadual de Agricultura.

É a equipe da Idaron que coleta regularmente material para exames em casos de suspeita de raiva. Sant'Anna contava-me que o pessoal especializado estava em campo nas 84 unidades no estado, fazendo o cadastramento de abrigos e capturando morcegos que se alimentam de sangue.

Em 2017 ocorreram 31 visitas, durante as quais a Idaron capturava com redes 101 morcegos hematófagos. No País, naquele ano, de dois mil exames realizados constataram-se 807 casos de raiva. Em Rondônia, de 57 exames em animais bovinos atacados, a Idaron constatava três casos positivos – em Porto Velho, Novo Horizonte do Oeste e Ariquemes.

Como estaria a situação atualmente, quando os rebanhos animais aumentam a cada ano? 

Enquanto a resposta não sai, lembremos de outros aspectos positivos desse serviço público tão maravilhosos quanto as análises de água feitas pela Sedam, lá no laboratório da antiga Vila Cujubim, na Capital: exames de restos de animais são feitos no laboratório da Idaron em Porto Velho, outros no Laboratório de Análise e Diagnóstico Veterinário na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, relatava o médico Sant’Anna. Com isso, a Idaron sabia identificar se realmente, a causa mortis do animal fora mesmo raiva.

Cada morcego solto, após receber a aplicação da pasta vampiricida, contamina dez a 20 outros morcegos da mesma espécie, no intervalo de quatro a dez dias, informava Sant'Anna. No mundo, apenas três espécies de morcegos possuem hábito alimentar hematófago (Desmodus rotundus, Diphylla ecaudata e Diaemus youngi), todos encontrados também no Brasil. No método indireto de captura aplica-se a pasta vampiricida ao redor das mordeduras recentes de hematófagos. Outros produtos vampiricidas também poderão ser empregados, e são de especial utilidade na bovinocultura de corte.

É isso, prezados leitores. O CPA tem quadros profissionais incríveis, e na Idaron trabalham alguns deles. São pessoas que sabem controlar esses morcegos, eliminando apenas os agressores  – aqueles que, para se alimentar, tendem a retornar em dias consecutivos ao mesmo ferimento.

O uso tópico da pasta na agressão deve ser repetido, enquanto o animal estiver sendo espoliado. Essa prática deverá ser realizada pelo proprietário do animal espoliado, sob orientação de médico veterinário. Preferencialmente, no final da tarde, permanecendo o animal no mesmo local onde se encontrava na noite anterior

O ser humano contrai a raiva pela saliva de um animal doente. A mordedura é a forma mais comum de contaminação, mas a doença também chega por arranhões e lambidas em ferimentos na pele ou nas mucosas da boca, nariz e olhos.

Quando bovinos ou equídeos (burro, cavalo, égua, jumento e mula) estão doentes, estes são os principais sintomas:

● Isolamento do restante do rebanho

● O animal parecer sonolento

● O animal parecer engasgado

● Quando apresentar salivação e agressividade

● Dificuldade em urinar e defecar

● Andar cambaleante

● Apresentar paralisia dos membros posteriores

● Cair e ter dificuldade para levantar

Na maioria das vezes, a morte ocorre entre o terceiro e o sexto dia após o início dos sintomas. Pode haver restos de sangue no pelo do animal, ou até um pequeno ferimento indicando o local onde o morcego mordeu.

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TEXTO ANTERIOR - Fest CineAmazônia faz falta em tempos de violência e do fim dos pajés na região amazônica ocidental


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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).


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As opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição editorial deste jornal.


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Fest CineAmazônia faz falta em tempos de violência e do fim dos pajés na região amazônica ocidental

Fest CineAmazônia faz falta em tempos de violência e do fim dos pajés na região amazônica ocidental

MONTEZUMA CRUZ*

Como faz falta o Fest CineAmazônia! No atual período de envenenamento agropecuário e ataques latifundiários madeireiros a acampamentos camponeses na região, a presença dos seus organizadores, Jurandir Carvalho e Fernanda Kopanakis é imprescindível. O Governo Federal deve sentir falta do trabalho deles e de uma equipe fabulosa que levava a sétima arte aos cantões rondonienses, áreas ribeirinhas, florestas, praças públicas, inclusive na Bolívia e no Peru. Mas não deve se limitar à saudade; bem que poderia trazer de volta o Festival, ao vivo, com todas as suas emoções.

Foto - Arquivos Fest Cine

Crianças acompanhadas pelas mães e pais, adultos e idosos prestigiavam sessões  notáveis que extrapolavam a projeção cinematográfica ambiental, reunindo-os em praças ou sob lonas para eletrizantes e conscientizadoras apresentações teatrais. Já em 2016, em sua categoria itinerante, aquele Festival alcançava praticamente a metade do percurso entre as margens dos rios Mamoré e Guaporé, na fronteira brasileira com a Bolívia.

Feito inédito na historiografia do cinema sul-americano, o Festcine levou com êxito o cinema, o circo e oficinas para comunidades ribeirinhas, quilombolas e pequenos distritos entre Brasil e Bolívia. À frente, os palhaços Chiquita e Cotonete mobilizavam o público acomodado em cadeiras e até no chão.

Incrivelmente, um madeireiro da região do Abunã, dialogando com a equipe, se dispôs a fomentar o manejo de árvores, algo que já havia buscado. De onde se vê quem nem tudo está perdido, apesar da motosserra e da ganância desenfreada de alguns. 

Quem participou dessas atividades guardou para sempre as mais sublimes lições de uma cultura que saiu dos grandes centros para se aproximar daqueles quase invisíveis,só lembrados em tempos de campanhas de saúde, ou quando viajam milhas e léguas, por rios e estradas, para vender sua produção de hortifrútis, farinha e castanha ao comércio das cidades. 

A trajetória do Festival sofreu interrupção antes mesmo da pandemia que paralisou o mundo e fez a arte e a cultura chocar-se com um governo pobre de espírito e sem a menor disposição em apoiar o setor. E assim ficaram na saudade aquelas incursões brasileiras em território boliviano e peruano.

Foto - Arquivo Fest Cine

Viagens da equipe dirigida por Fernanda e Jurandir  nesta parte do norte brasileiro e na fronteira com esses dois países vizinhos se tornaram um marco só valorizado por educadores e autoridades municipais ou distritais que aceitaram receber o Festival itinerante por considerá-lo essencial à formação cultural das pessoas.

A primeira parada da itinerância fora inédita pela lotação, sempre superior a cem pessoas, a exemplo da Reserva Extrativista Rio Ouro Preto, no município de Guajará-Mirim, a 380 quilômetros de Porto Velho, em plena floresta. Em seguida, o antigo distrito de Iata, antigo polo agrícola do antigo Território Federal de Rondônia. Depois, o teatro e o cinema fez a alegria dos organizadores e do Ministério da Cultura nas cidades homônimas de Guajará Mirim e Guayaramaerín (Departamento de Beni, Bolívia).

Na memória dos que acompanhavam essas viagens estão vivos esses bons momentos. A primeira parada em San Lorenzo, próxima ao Rio Mamoré, mostrou aos organizadores do Festival uma comunidade simples onde a escola, a pracinha, a pequena igreja e o posto de saúde se destacavam. Em frente ao rio, botos exibiam-se aos olhos de visitantes que nunca os havia visto anteriormente. A natureza, o cinema, o teatro e o circo, de mãos dadas, proporcionaram dias felizes na fronteira.

Em maio de 2022, três anos atrás, a 18° edição do Cineamazônia - Festival de Cinema Ambiental, online e gratuitamente, o Festival inteirava sua maioridade e os 40 anos de Rondônia.

Pois bem, conforme frisei inicialmente, o mais antigo e maior festival de cinema ambiental da Amazônia encontraria de novo, agora, a melhor forma de conscientizar as pessoas contra o barbarismo que temos visto na região, e faz parte disso, o reconhecimento às pessoas como indispensáveis à sobrevivência de milhares de famílias que não se alimentam de soja, porém, plantam e consomem alho, batata, açaí, cupuaçu, cebola, inhame, mandioca, milho, feijão, frutas diversas, café (!). Nessa sobrevivência, brancos e indígenas também colhem ouriços das milagrosas castanheiras que ainda teimam em ficar. E é no quintal deles que os grandes compram essas castanhas e o já milionário café.

A volta do Cine Amazônia  parece-me essencial por traduzir a verdadeira integração das pessoas, concentrando crianças e jovens artistas em animadas oficinas teatrais, cinematográficas e circenses. Hoje, a juventude indígena já produz seus próprios documentários, curtas metragens, fazendo o "milagre do santo da casa", toda vez que encontram público disposto a conhecer sua história e cultura. 

Em minhas andanças pelo território Paiter Suruí conheci seu Luiz, agente de saúde, que já catalogou mais de 30 plantas essenciais ao tratamento de diversos problemas de saúde (respiratórios, rins e fígado, e mentais), mas, infelizmente, lá está confinado na Aldeia Lapetanha, sem que as Universidades tenham chegado até lá. Numa das margens do Rio Guapó eu experimentei a orssaia (pronuncia-se: osrraia), indicada para o controle da sinusite.

Antes que um laboratório multinacional apareça, precisamos aqui lembrar que o País trabalha com sua Agência Nacional de Vigilância Sanitária; técnicos do Ministério da Saúde sabem orientar a busca de recursos para pesquisas; e o cinema, quem sabe, daria visibilidade aos conhecimentos que antigamente pertenciam somente aos pajés. E cadê os pajés? Sumiram, se evangelizaram, parecem envergonhados de seus antigos feitos – muito antes da covid-19. 

Texto anterior - Entre o romantismo e a zona do meretrício, aborto afetava a sobrevivência de mulheres

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

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Entre o romantismo e a zona do meretrício, aborto afetava a sobrevivência de mulheres

Entre o romantismo e a zona do meretrício, aborto afetava a sobrevivência de mulheres 

MONTEZUMA CRUZ*


Se na Capital a entressafra do sexo em 1979 fazia aumentar o ibope da novela Pai Herói, da TV Globo, quem se dispusesse a ‘comer pó’ encontraria alguma opção no interior do território. Não era muito, pois até lá a fama dos garimpeiros do Madeira havia chegado, haja vista a superlotação feminina dos ônibus que demandavam a Porto Velho. Cansadas da longa espera, as “pastoras” da Capital começavam a procurar melhores ares em Ariquemes, Cacoal e Ji-Paraná. “Pastoras”, repito, era designação às mulheres que sondavam ambientes e organizavam mulheres para o trottoir e as noitadas na zona boêmia.

A decoração da Boate Copacabana, no Bairro do Roque, só mudaria na pintura das paredes: saíram sereias e paisagens andinas para dar lugar a tigres verdes em tom escuro. E ficariam afixados os preços das bebidas pintados em letras irregulares e coloridas

Canções dor de cotovelo, bolerões e carimbós que faziam lotar a pista de cimento vermelho passavam a dividir o tímido espaço com o hit parade de discotecas, onde o reggae “Não chore mais” (Don’t let me cry) pontificava soberano. Mas a pista não mais se enchia de dançarinos.

Socorro, jovem acreana, fazia programa nas boates de Roque, mesmo após abortar (foto: Jorcêne Martinez)

Foi nesse ambiente que conhecemos Socorro, 17 anos, acreana, quando se restabelecia de um aborto. Encantava qualquer um ver aquela morena de cabelos curtos transando pernas em frente às casas noturnas do Roque, tentando pegar um companheiro ao mesmo tempo em que se escondia do camburão da polícia.

Socorro, mocinha pálida, magra, com os peitos tumefeitos de leite, e timidamente escondendo o sorriso com as mãos, contava que se entregava ao mercado do sexo “porque precisava comer.”

–  Abortei, porque o pai do neném é casado. Como é que eu poderia criar a criança ?” – justificava-se.

Olhando firme nos olhos do repórter, Socorro desabafava:

– Nos dias que passei em casa – morava num quartinho perto do Bar Arapuca – sangrando que nem vaca esquartejada, o fdp não apareceu nem pra me dar um Melhoral [comprimido para dor de cabeça].

Os saudosos jornalistas Jorcêne Martínez e Paulo Queiroz ouviriam depois o mesmo pedido de compreensão que ela fazia a todos os homens arranjados no trottoir:

– Vá com cuidado, moço, faz uns 15 dias que perdi meu filho, eu ainda estou muito dolorida.

Não era raro acontecer mortes maternas no Brasil dos anos 1970, o que infelizmente ainda ocorre nos anos 2000. Por sorte, Socorro escapava de fazer parte dos casos dos casos de mortalidade materna, um grave problema de saúde pública no Brasil.

Daí, fazer sentido a música Amor perfeito [ou: Fruto de nosso amor], escrita em 1973 pelo goiano Amado Batista, atualmente criador de gado bovino. Ela mexeu muito com o sentimento paterno dos frequentadores das pistas de dança naquele período. Batista nasceu em Davinópolis, então pertencente a Catalão em 1951. O intérprete, Odair José, era ouvidos todas as noites em Porto Velho.

Amado Batista e Odair José:  imortalizados na ZBM com a canção que fala da mulher que morre no parto (foto - gravadoras)

Como se fosse uma ode à dor profunda Amor perfeito foi tocada intensamente em rádios e bordéis nos dez anos seguintes ao lançamento, constatei:

  • Amor perfeito existia entre nós dois
  • Sem esperar que depois fosse tudo se acabar
  • Mas neste mundo, que o perfeito não tem vida
  • Não merecemos, querida, viver juntos e amar
  • Nosso Senhor para sempre te levou
  • Nem ao menos me deixou o fruto do nosso amor
  • Aquele filho seria a nossa alegria
  • E eu senti naquele dia ser um pai, ser um Senhor
  • No hospital, na sala de cirurgia
  • Pela vidraça eu via você sofrendo a sorrir
  • E seu sorriso aos poucos se desfazendo
  • Então vi você morrendo, sem poder me despedir

Segundo a Plataforma Integrada de Violência em Saúde, consultada às 11h15 de 7 de maio de 2023 pelo autor deste livro, 433 mulheres morreram em hospitais públicos de Rondônia; outras 24 nos demais estabelecimentos; 95 em domicílio; 51 na via pública! e 28 noutros locais; nenhuma em aldeia indígena. Ao todo, morreram 631 mulheres das 66,8 mil em todo o País.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2021, a razão de mortalidade materna alcançou 107.53 mortes a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2019, a razão era de 55.31 a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2020, foram 71.97 mortes a cada 100 mil nascidos vivos, o que já representou um aumento de quase 25% em relação ao ano anterior.

O Brasil conseguiu reduzir em 8,4% entre 2017 e 2018 a Razão de Mortalidade Materna (RMM), um dos principais indicadores de qualidade de atenção à saúde das mulheres no período reprodutivo. Em 2018, a RMM no País foi de 59,1 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, enquanto no ano anterior era de 64,53.

Quase quatro décadas depois das primeiras incursões de mulheres aos garimpos do Madeira, este repórter conheceu a massoterapeuta Luciana Belegante, que auxiliou a Congregação das Irmãs Ursulinas em visitas ao entorno do canteiro de obras da hidrelétrica Jirau.

– Na Pastoral da Mulher Marginalizada, auxiliando as Irmãs, assistimos bem próximas ao drama de bolivianas que também se prostituíam ali. Em algumas ocasiões, para conversar com elas, tínhamos que aguardar a conclusão de seus programas. Elas saíam do quarto constrangidas, e aí começava o nosso trabalho.

Luciana relatou a situação em entrevista à rádio FM Rio Madeira no programa Café Notícias Comunidade Mix, de Marco Wolff, em agosto de 2023. Entre outros problemas, ela e as Irmãs Ursulinas constataram casos de gravidez precoce e de doenças transmissíveis.

A área de influência do Madeira cobre 1,42 milhão de km² em três países e compreende cerca de 20% da área da bacia hidrográfica amazônica, a maior do planeta. Dentre todos os tributários do rio Amazonas, nenhum contribui com carga de sedimentos maior do que ele.

Em geral, o garimpo tem código. Funciona igual ao presídio. Ladrão e homicida, por exemplo, não têm vez. Se for bem procurado e descoberto, é morto também. Por isso, a estatística da violência também crescia à beira do rio.

foto - garimpo

A droga foi um flagelo no território dourado. Em maio de 2017, durante o 1º Congresso em Dependências Patológicas de Rondônia, o então procurador-geral do Ministério Público Estadual Airton Pedro Marin Filho mencionava os danos culturais, sociais, econômicos e ambientais causados pelo intenso fluxo migratório e pelo ciclo de exploração desordenada de minérios e metais na região.

“Tudo aconteceu diante da deficiência dos serviços públicos ofertados em Rondônia, à época recém-elevada à categoria de Estado.”  “O próprio regime de trabalho nas balsas e dragas instaladas no rio Madeira permitia aos garimpeiros recorrer às drogas para conseguir ficar mais tempo submersos em busca de ouro”, explicava.

Odetinha, assim como ficara conhecida a jovem de Caetité (Alto Sertão baiano), 19 anos outra conhecida das noites no Roque desde que chegara de Cuiabá, trocara a família de pequenos agricultores pela prostituição na zona do Ribeirão do Lipa na Capital mato-grossense, e de lá, com as poucas economias, ficaria à espera do ouro dos garimpeiros.

A pele morena e os olhos verdes, se encontravam bons fregueses, angariavam rivalidade entre as colegas amazônicas. E ao mergulhar fundo na maconha quase definhou. Não gostava de Porto Velho, detestava pagar aluguel e colocava defeito em suas tristes e forçadas escolhas (ou aceitações): “São muito trambiqueiros e pechincham o preço, parece que estão comprando tomate na feira, credo!” – queixou-se um dia.

Uma noite procuramos Socorro, que ainda permanecera um ano circulando no Roque, mas quando fomos atrás de Odetinha, cadê? Havia zarpado da cidade, e até hoje não tivemos notícia se o vício a derrubou, ou dele conseguiu livrar-se. Tomara que sim.

No encerramento de grande parte da atividade garimpeira na década de 1990, lembrava, instalava-se uma crise na região, “o que só acentuou a operação do tráfico de drogas, moeda utilizada para a compra de armas e ouro.”

Nesse cenário, conforme ele descrevia em 2017, “criou-se uma cultura de fornecimento e consumo de drogas”, e assim, dos 9 mil detentos do Estado, 2.441 estavam presos por tráfico. “Em Porto Velho, o berço do problema, o tráfico foi a causa responsável pela prisão de 1.325, do universo de 4.413 pessoas.

Porto Velho foi perdendo ao longo dos anos seus ícones da noite. Alguns deles comandavam casas noturnas que funcionavam desde os anos 1970. Seu José Ferreira, em sua esplêndida Boate Arariboia, teve um trágico fim. Ferreira viajara para Manaus em fevereiro de 1999 no barco Ana Maria VIII, que saíra lotado do cais de Porto Velho com turistas de Curitiba, Chile, Argentina. Itália e Uruguai.

O barco possuía 25m de comprimento, três andares e 17 camarotes. Num deles estava Ferreira, que saíra superlotado, tombou e veio afundar num rodamoinho na Ilha do Boqueirão, a 20 km do porto de Manicoré e a 409 km de Manaus, onde iria atracar.

Nesse acidente ocorrido na noite de 10 de fevereiro daquele ano, 45 anos depois de encerrar as atividades da boate, ele morreu trancado na cabine. Ao todo perderam a vida no acidente 61 pessoas, das quais 18 corpos foram identificados e os outros 43 desapareceram e nunca foram encontrados.

Consta que, ao sair de Porto Velho o dono do barco e sobrevivente Paulo Jorge Fonseca de Oliveira entregou à Capitania Fluvial a relação de mercadorias a bordo: eram 15 toneladas de grãos, verduras e frutas. Segundo sobreviventes, o Ana Maria VIII recebeu veículos automotores ao passar por Humaitá. Estava sem alvará de segurança e anos depois do acidente, indenizações cobradas por familiares ainda estava pendente na Justiça.

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Em 2018, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 442 trouxe à tona o debate sobre aborto no País, reacendendo o assunto na sociedade. A pesquisa nacional de aborto, que é a mais confiável feita por amostragem em domicílios e utilizando a técnica diurna (uma metodologia mais apurada, mais precisa), estimava que até chegar aos 40 anos, uma a cada cinco brasileiras terá provocado pelo menos um aborto. Ou seja, uma a cada cinco mulheres, todo mundo conhece 5 mulheres. De acordo com esta pesquisa, realizada em 2016, em 2015 mais de quinhentas mil mulheres praticaram aborto.

As evidências demonstram também que os países com legislação proibitiva praticam tantos, ou até mais abortos que os países com legislação mais permissiva. Principalmente as mais pobres e as negras, que têm o risco de morrer em complicações com aborto três vezes mais do que as brancas, com métodos que acarretam sequelas e complicações inadmissíveis, causando hemorragia, infecção, choque séptico e complicações de longo prazo e morte. A estimativa é de que o aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil.

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

Texto anterior - Baculejo e Juizado agitavam coroas e cocotas


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