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Baculejo e Juizado agitavam coroas e cocotas

Baculejo e Juizado agitavam coroas e cocotas

Por Montezuma Cruz*


– Tu estás torrando o salário no lupanar? – indagava o jornalista Vinícius Danin a seus colegas do jornal Alto Madeira. Ele adorava essa designação de prostíbulo ou cabaré. Ambas as palavras têm a mesma adjetivação, e o que valia era o som daquele sotaque paraense de um dos mais queridos profissionais de imprensa na história da Capital rondoniense.

Taba do Cacique fez sucesso durante mais de três décadas na noite porto-velhense

Aqueles em melhores condições frequentavam a Taba do Cacique e a Maria Eunice, mas havia os que rodavam em carro próprio ou de táxi, com um pé lá e outro cá. Ou seja, tanto iam à ZBM quanto iam às casas requintadas. Na Taba coberta de palha e com enormes cascos de tartaruga pendurados no teto dançava-se do mesmo jeito que nos clubes sociais, e se disser que o estabelecimento de seu Carmênio Barroso recebia gente da alta sociedade pode soar exagerado, mas era assim mesmo. Ambiente finíssimo e organizado. Um dia acabou.

Vinicius Abraão Coutinho Danin: lendário jornalista paraense que marcou época em Rondônia

“(...) Chego ao fim de semana com o coração entristecido. Na Avenida Pinheiro Machado, bem no centro de Porto Velho, região que frequentei com assiduidade nos meus tempos de porrista, num happy end onde o melhor de nossa intelligentsia esperava o raiar do Sol, como todo bom boêmio, um enorme tapume cerca aquele lugar que foi – para mim e para tantos – o último grande reduto cultural de Porto Velho, onde era possível viver e recriar sonhos. Estou falando, é claro, da Taba do Cacique, um lugar que sempre fascinou àqueles que tinham em si uma semente revolucionária, o desejo idílico de transformar, quando não o mundo, pelo menos a nossa querida Rondônia” – escrevia o jornalista Gessi Taborda em 31 de março 2003.

“A Taba do Cacique – invenção dessa figura extraordinária que é o Carmênio – era, por assim dizer, o lugar preferido de todos os que acreditavam na arte, no utópico, no idealismo, no romântico. Sempre à meia luz, a Taba nunca deixou de ser um lugar iluminado. Danem-se os falsos moralistas e os recém-convertidos ao comércio religioso, que contribuiu para destruir o saudável clima de cabaré que fazia de Porto Velho, em vez de sórdida filial de oportunistas, a grande Shangrilá para seus filhos adotados como eu próprio – de regiões dominadas pelo conservadorismo careta.”

Carmênio Barroso, dono de um restaurante que reunia empresários, ativistas culturais e lindas mulheres

Taborda derramava seu pranto, dividindo a decepção com centenas de antigos e recentes frequentadores: “A Taba, ferida de morte, está com seu passaporte carimbado, emparedada pelo tapume de agora, para o mitológico de um espaço que deveria ser preservado como um museu vivo (...)”.

“A Taba reinou imponente por anos a fio entre botequins, bordéis, casas de pasto (ah! como me recordo da Narita!) com suas fachadas meio barrocas, meio neoclássicas, meio borocochô pop. Nesse grande quadrilátero onde Porto Velho não dormia, a Taba na sua glorificada arquitetura indígena foi certamente o cenário dominado pelos personagens shakespearianos que faziam da noite de nossa Capital uma rica experiência cultural e intelectual fascinante até para quem nos visitava pela primeira vez” – lamentava o jornalista.

“Seu fim deve ferir o orgulho de nós todos que nos defrontamos com uma cidade decaída de sua beleza superior, de sua insuspeita poesia nascida no bucolismo daqueles ligados pela alma às nossas origens ribeirinhas e florestais. Com a Taba do Cacique se vai um pouco da afirmação de nossa identidade, de nossa coragem revestida de mansidão amazônica, de nosso sonho libertário de pioneiros e desbravadores.”

Sem o velho glamour original da “casa da Maria Eunice”, ao lado da antiga Teleron na Rua D. Pedro II, que não existe há tempos, mulheres ainda faziam ponto em 2023. Lá no quintal estavam em pé e perfumados os quartos cujas paredes “contam histórias”, e dentro do prédio, o salão onde se reuniu a nata do empresariado porto-velhense recebida carinhosamente pela gerente, dona Deusa. 

Rigoroso até as tampas, o arrocho às casas noturnas fez apagar as luzes coloridas em diferentes pontos. O movimento foi caindo até mesmo em casas mais requintadas, a exemplo da Arariboia, do empresário Ferreira, onde um globo iluminado lá no meio e no alto da boate girava o tempo todo. Era semelhante àquele visto na coreografia da novela global Dancin’Days, que fez sucesso também aqui em Rondônia entre junho de 1978 e janeiro de 1979. Só que o Ferreira estreara seu globo giratório bem antes da novela.

A debandada das menores arrastou mulheres adultas e experimentadas, que até então se lixavam para as leis dos costumes – única talvez a vigorar nos prostíbulos.

Pressionados pela Igreja Católica, que via na prostituição juvenil “uma verdadeira chaga aberta na sociedade”, o Juizado de Menores até então inoperante e apático, funcionando praticamente graças à abnegação de uns poucos comissários pouco remunerados, começou a “corrigir os costumes.” Obviamente incentivados pelo empurrãozinho da Secretaria de Segurança Pública territorial.

Quase indiferentes a tanto barulho, enquanto a tempestade fazia naufragar barcos de longas milhas no mar agitado das noites de Porto Velho, ninfetas [ou cocotas, como se dizia aqui] rebeldes e carentes da sobrevivência financeira, permaneciam em frente às boates. Estavam impedidas de entrar nas boates da ZBM, e assim faziam o trottoir nas barbas do porteiro, dos aliciadores, e diante de frequentadores com água na boca.

Acostumado a viajar no eixo Manaus-Rio Branco-Porto Velho, um representante comercial de marcas famosas de calças e camisas de uma fábrica do interior paulista buscava explicar o fenômeno:

– Isso não é coisa de se estranhar, a gente até esperava que um dia fosse acontecer. É claro que a polícia dando em cima das menores, quem estava acostumado com meninas de trinta e poucos quilos, só a perigo “comerá” uma “coroa” ...

No entanto, as “coroas” prezavam muito a sua participação naquele combalido período de decadência, e conversas iguais à do representante comercial soavam como exploração. “Não é agora que vamos deixar a peteca cair”, gargalhava Paula, 30 anos em 1979. Ela estava cansada de ouvir que os homens que iam ao bairro do Roque estavam mesmo a fim de valorizar as “coroas”.

Entre um prato de sopa e outro, num dos quiosques em frente à Boate Copacabana, Paula comentava com Inês, colega vinda do Acre: “A pensão da mamãe é um lugar tranquilo, sempre arrumo meus homens por lá, mas o melhor negócio mesmo é a gente correr trecho, mana.” Segura de si: “Eu acho uma boa, por isso não paro mais em Porto Velho. Na verdade, tem muita garotinha aí querendo botar banca. Pra cima de mim, não! Sou filha de cearense e na cama derrubo muito macho metido a besta.”

E foram se sucedendo as batidas. Caçavam menores sob mesas e debaixo de camas, constrangendo frequentadores do salão e ocupantes dos quartos que nada tinham a ver com a situação. 

Maurício Fares, cantor de sucesso na Amazônia, trabalhou na Rádio Caiari e na TV Rondônia

A SSP arranjava uma confusão tremenda, pois a maioria desses habitués não gostavam nem um pouco de ser flagrada longe de casa. Por vezes a polícia excedia-se no zelo passando a exigir documentos das pessoas. Numa noite estávamos na Riomar com o radialista Maurício Fares* (Caiari AM), quando a polícia chegou para um baculejo. 

Maurício carregava na sacola de pano: rouge e batom usados para contrastar sua pele morena nas edições diárias do Jornal de Rondônia da TV, onde também trabalhava. Mexe daqui, mexe dali, e nós todos assistindo a cena, ouvimos de um dos agentes:

– Que porra é essa! Radialista? Esse cara é um bichona.

A abordagem terminou com muito riso, caipirinhas e cervejas sobre a mesa dos jornalistas.

Revistando todo aquele que considerava a suspeito, a polícia puxava as toalhas das mesas para encontrar meninas, e ia até os quartos dos fundos onde as mulheres viam levados, muito a contragosto, seus pretensos fregueses.

Quando endureceu a abordagem nas estradas, só tinham garantido o direito de ir e vir, mesmo desacompanhadas, as menores portadoras de autorização do pai ou responsável. Como essa parte das medidas não surtia efeito, inventavam de exigir autorização fornecida pela autoridade competente, ou seja, do Juizado da cidade de onde procediam. 

A despeito do juiz Benedito Geraldo Barbosa afirmar naquele período “desconhecer a entrada de menores procedentes de outras cidades, o troca-troca entre o Acre, Goiás, Mato Grosso, e Rondônia continuaria. 

O juiz do Acre, Evaldo Abreu de Oliveira, ameaçava dobrar a fiscalização em caminhões e ônibus. Chegou a notificar algumas empresas, mas as meninas começaram a transitar de carona entre um estado e outro. (Voltarei ao tema)


NOTA 

Maurício Fares, mineiro de Uberlândia, começou a carreira no serviço de som da Estação Rodoviária de Brasília. Acompanhou a construção de Brasília e trabalhou 25 anos na Rádio Nacional da Amazônia. Seu período de trabalho em Porto Velho (1978-1979) deu uma guinada na Rádio Caiari AM: à noite ele gravava com repórteres e editores os principais destaques das edições do dia seguinte de A Tribuna, Alto Madeira e O Guaporé. Isso tornava mais atraente o jornal-falado matinal daquela emissora, pois nossas vozes, de artífices da notícia, faziam repercutir o conteúdo de cada diário, e o público apreciava essa identificação.

Maurício, cantor de “Coração ferido”, entre outros sucessos populares, foi um dos mais famosos integrantes do cast da Rádio Nacional. Sempre foi prestigiado pelo público amazônico. Um recorde: apresentou-se em um show com 85 mil garimpeiros em Serra Pelada (PA), juntamente com Cleyton Aguiar, Márcia Ferreira, Rui Simas, e a dupla Chico Rey e Paraná.

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

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A estupidez que vem de priscas eras ainda assusta

A estupidez que vem de priscas eras ainda assusta

Por Montezuma Cruz*


A leitura de Frank Joseph (“Atlântida e outros mundos perdidos”) tem me feito bem, a ponto de me indignar o suficiente com tantas protelações do poder público no que diz respeito à salvação de nossos arquivos impressos.

Biblioteca F. Meireles

Aprendo que o primeiro mapa da Ilha de Atlântida, feito no Egito após descrição do filósofo Platão, foi obra do polímata alemão Athanasius Kircher (1602-1680), padre jesuíta, matemático, físico, químico, linguista e arqueólogo, o primeiro a estudar a fosforescência, inventor do primeiro projetor de eslaides e de um protótipo do microscópio.

Livro: Atlântida
Delicio-me, sempre à noite, com esclarecedores capítulos desse livro que adquiri pela pechincha de R$ 10 num sebo temporário dentro do Porto Velho Shopping. Também me espanto com revelações cruéis: o primeiro lar do mapa da ilha fora a Grande Biblioteca de Alexandria, instituição construída por Ptolomeu II e incendiada (!) por fanáticos religiosos em 392 d.C sob as ordens do imperador cristão Teodósio I.

Na Biblioteca havia diversos livros e referências à Atlântida, e eles se perderam, junto com outros milhões de volumes. Levado para Roma, o mapa de Athanasius Kircher escapou dessa destruição.

Já batemos repetidamente nas mesmas teclas: mostramos no Facebook – jornalista Antônio Fonseca, eu, e outros mais, a situação de penúria das coleções de jornais na Biblioteca Francisco Meirelles e no Museu da Memória Rondoniense (MERO). O jornalista Marco Aurélio Anconi lá esteve com membros da Academia Rondoniense de Letras, indignando-se com a situação e publicando um texto na internet.

Exemplares que não estão com páginas arrancadas ou cortados com tesouro e réguas, começam a virar pó. A máquina de digitalização pertencente ao município corre o risco de “engasgar”-se igual a motor de carro que há tempo não anda, pois nunca funcionou. Espera-se agora que um convênio com o Instituto Federal de Rondônia (IFRO) possa tirá-la das teias de aranha.

Biblioteca de Alexandria

Comparação indispensável: o crime de atrasar a recuperação do patrimônio literário e histórico do velho Guaporé e de Rondônia é tão nocivo quanto aquele ocorrido em Alexandria. A diferença está nos métodos: uns ateiam fogo, outros parecem não se importar se a imensurável matéria-prima histórica guardada em prateleiras e gavetas tem prazo de validade.

No MERO, um dia tive o privilégio de pôr as mãos em mapas da cidade de Porto Velho desenhados nos Estados Unidos, no século passado. Lá também estão guardadas fotografias antigas da construção e do funcionamento da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. 

Ali estão obras de arte, sucatas de ferro e cerâmicas; também foram catalogados fósseis datados de 45 mil anos (!). A sala confiada à artista Rita Queiroz exibe, além de belíssimos quadros retratando a natureza, vidrinhos com óleos usados durante o pré e pós-parto por mães nos seringais às margens do Rio Madeira.

Ainda o livro que leio (pág. 41): “Semelhante às conclusões modernas forçadas pela compreensão atual da geologia da Dorsal Meso-Atlântida, o mapa de Athanasius Kircher retrata Atlântida não como um continente, mas como uma grande ilha. Indica um vulcão alto e localizado ao centro, provavelmente destinado a representar o Monte Atlas, e possivelmente o Monte Ampére descoberto em meados do século XX por uma equipe da National Geographic, junto de mais seis rios.”

A preservação cultural e histórica é tudo de bom em um mundo dominado por 80% de besteirol em redes sociais, no Waths App e noutros aplicativos. O ser humano teima em se iludir.

Se a humanidade antes de Cristo salvava hieroglifos e inscrições em couro, hoje temos a maciez do scanner e as nuvens para guardar aquilo que teima virar pó, por incúria ou desfaçatez. Por que não proceder logo a essa salvação da memória, elegendo-a entre as prioridades municipais e estaduais? 

Impossível conceber que uma máquina de scanner só funcione após a troca do telhado e a pintura do Museu da Memória, que tem supervisão estadual, ou quando a Biblioteca Francisco Meirelles receber a devida atenção do município?

Confesso que, de um lado entrego os pontos, enquanto de outro mantenho a chama da esperança. Ou seja, aqui repetindo o dístico no alto da primeira página de uma das edições do meteórico jornal “Barranco” (1979-1980): “Em terra de sapos, de cócoras com eles.”

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

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TEXTO ANTERIOR - E a repórter foi à ZBM, de bicicleta!


E a repórter foi à ZBM, de bicicleta!

E a repórter foi à ZBM, de bicicleta!

MONTEZUMA CRUZ*

Setembro de 1979: no bairro do Roque e de suas casas noturnas com suas luzes estroboscópicas e mulheres bem-vestidas, o segundo escalão da zona do baixo meretrício (ZBM) sonhava frequentemente com a chegada de garimpeiros a Porto Velho. Noutros pontos também era assim – o Bar Santo Antônio de seu Januário, por exemplo, na Avenida 7 de Setembro próximo ao Mercado do Km 1 e o Curral das Éguas, do Chicão, também funcionavam assim. 

No Curral das Éguas, a “pastora” com menos quilômetros rodados de cama estava na casa dos 40 anos, o que garantia a ambas as partes um papo mais sério e de efetivos resultados. Reúno aqui mais uns trechos do meu livro "Território dourado", com adendo para explicar quem é a jornalista gaúcha Cristina Ávila. 👇

Cristina Ávila - álbum pessoal

Antes do advento da fama de Mutum-Paraná, qualquer peão que se aventurasse por lá seria tratado a “leite de pata” e chamado de doutor. Depois, quando muito, conseguia lugar numa banqueta para beber canja requentada e com mais dificuldade ainda, uma velha “pastora” para passar algumas horas num quartinho dos fundos.


Disputados por brasileiros e bolivianos, Tamborete e Palmeiral foram palco de tiroteios, fuzilamentos e mortes, deixando dolorosas marcas da tragédia amazônica que acontece na zona urbana e na floresta. O Exército Boliviano espancava e prendia garimpeiros, tomando-lhes o metal apurado.


Foi com os irmãos Geraldo (da Riomar) e Edson (da Boate Christian, no Bairro Nossa Senhora das Graças, que a vida noturna de Porto Velho conheceu o apogeu.  Até que um dia, aquela casa que também se chamou “Florestal” e, ao agonizar, “Fantasma”, sobreviveu apenas em nossas memórias.


O empresário Edson pareceu picado pela mosca azul dos burareiros [assentados pelo Incra em terras para o plantio de cacau] endinheirados que desembarcavam da Bahia em Ariquemes, e mudou-se para lá de malas e bagagem. Só não levou junto as “pastoras”, mulheres que faziam ponto em sua boate e ajeitavam suas conhecidas para a clientela.


Antes de ir embora, ele contava que Ariquemes já havia abrigado uma parte das "pastoras" de Porto Velho. E que as senhoras evangélicas de hoje me perdoem com a leitura desta parte do livro: “pastora”, entre 1970 e 1980 era a designação da mulher que se entregava aos “serviços femininos” nas noites porto-velhenses.


O asfaltamento da BR-364 facilitava a vida do empresário Edson, e ele via nesse progresso a oportunidade de promover o vaivém das meninas, semana sim, semana não.


Numa cidade sem maiores opções, boêmios e notívagos – incluindo-se alguns políticos, jornalistas, empresários e profissionais liberais – encontravam nas casas de prostituição do Roque o único meio de gastar as energias, outros, o minguado excedente do salário-mínimo. Alguns empresários e garimpeiros sempre dominavam o espaço da ZBM, até mesmo patrocinando noitadas dos amigos mais chegados.


Em proporção vantajosa e diante do sempre crescente número de mulheres, além do sexo barato, eles eram disputados à porta pelas sôfregas “pastoras”. Na ZBM da Capital, eles chegavam geralmente em grupos de cinco ou de até dez homens que arrebanhavam tudo o que encontravam pela frente. A fama desses conquistadores de barranco chegava forte aos cafundós do Madeira, tanto que as chamadas “garimpeiras do sexo” (mulheres que se prostituíam naquele período) circulavam todas as noites pelas imediações e lá dentro das boates.


Nas ruas sem asfalto, driblando os lamaçais, até meninas menores de idade eram vistas em seus indefectíveis shorts fazendo o trottoir. No Bar do Januário, no Chicão e na ZBM do Roque a presença das moçoilas animava o fã clube despertando, ao mesmo tempo raiva nas colegas mais velhas, medo nos donos dos estabelecimentos e pensamento de jerico nos frequentadores.

Mosquito da malária - Agência Brasil

Mas o cenário movia-se da rara felicidade nos puteiros ao consultório farmacêutico ou hospitalar. Aqueles homens nômades vindos de outros estados amazônicos e de diversas regiões brasileiras engordavam as estatísticas da malária, consumindo altos volumes de boldo, jurubeba, eparema, aralém e eparex. Esses remédios diminuíam-lhes a ânsia de salvar o fígado.


“Entre meus melhores anos de vida, estão os primeiros anos de jornalismo. Eu era uma jovem deslumbrada que deixara Porto Alegre para experimentar a Amazônia. Nas redações porto-velhenses [ou porto-velhacas como a gente dizia] encontrei meu amigo-guru Montezuma, e mostrava pra ele cada lead que eu escrevia” – conta a jornalista Cristina Ávila, atualmente uma das melhores jornalistas ambientais do País.


“Eu era fascinada por aquela Rondônia que se transformara em estado um mês antes da minha chegada, um território federal que cresceria com a ajuda de motosserra e correntão. Foi nele que me apaixonei pelas questões ambientais e indígenas. E foi lá que aprendi a ser jornalista, provocada pelos valiosos colegas que já exerciam a profissão há alguns anos, com muito gosto e competência. O Monte pediu-me para fazer uma matéria na zona de meretrício, no Roque.


“Depois eu fui descobrir que era só uma provocação, uma brincadeira no meio da tarde na Redação do jornal A Tribuna, mas eu acreditei e fui – de bicicleta e à noite! – prossegue Cristina.


“Não havia ainda a mordomia de carro fora de hora para a equipe. Chegando ao Roque, deixei a magrela no canto da rua, que era tomada de barracos caindo aos pedaços dos dois lados, e entrei no puteiro. Saí de lá feliz, de madrugada, depois de tomar cervejas vendidas a preço de ouro e anotar muitas histórias. Deixei muitas moças e garimpeiros sem entender coisa nenhuma. Não conseguiam conceber porque uma guria de 25 anos estava mais interessada em conversar do que em arrematar algumas daquelas pepitas que brilhavam em abundância em cima das mesas” – ela acrescenta rindo muito.

Dentes de ouro, fotografia de Marcos Santilli em Rondônia 


Táxis chegavam e saíam, trazendo e levando homens de todos os tipos e caráter. Em frente a uma das seis banquinhas (quiosques-lanchonetes) das imediações das boates, a do conhecido Degas era a mais frequentada. Prato feito e sopa custavam 20 cruzeiros a unidade, e churrasquinhos, dez cruzeiros. Ao lado funcionava o snooker Taco de Ouro, cujo proprietário, conhecido por Baiano, arrendaria em 1979 a Boate Copacabana, que nasceu após a interdição definitiva da Boate Riomar, a mais frequentada por menores.


A promiscuidade amazônica começava nesse período a se chocar com a Lei, porém, sem o impacto causado pela internet – que só chegaria 18 anos depois – e mediante vergonhosos acordos entre molestadores, vítimas e pais que concordavam em receber dinheiro para esconder sua cumplicidade com a “venda” do corpo da filha.


O jornalista Jorcêne Martínez, de A Tribuna, e comigo, editor do jornal mensal Barranco, constatava situações dolorosas e ao mesmo tempo banais: “Olha, ontem um pai com 47 anos de idade me revelou casos de amigos que ofereceram filhas! Ele me disse que os conhecidos dele sabem qual será o destino delas, mas concluem que uma boca a menos é mais forte que a vergonha”.


A permissividade amazônica ali estava diante do repórter que tempos antes se surpreendera no bairro Papoco, em Rio Branco, ao relatar que uma menina de 11 anos dera à luz um bebê. E o noticiário dando conta de pais e mães “vendendo” filhas prossegue até os dias de hoje.


De alguns de seus entrevistados na ZBM, Martínez ouvia frases que pareciam ensaiadas, porém, denotavam sentimentos verdadeiros. Nessa linha: “Quando conheço uma situação de pai que entrega a filha, lembro das minhas menores; daí, quando me vejo numa enroscada igual dou um dinheirinho à mocinha e não fico mesmo. É horrível para uma virgem começar a vida num bordel.”


Com a Riomar agonizava a vida noturna porto-velhense, e nem a sua pretensa substituta, a Paissandu, a menos de cem passos da Copacabana, conseguiria reeditá-la.


Casa da Anita, Rosa dos Ventos, Stúdio 29, Cema, Tartaruga, todas com características próprias, tornavam frenética a noite em Porto Velho. Esses lugares encantavam não apenas garimpeiros, mas uma enorme casta de profissionais liberais, políticos, jornalistas e aqueles menos endinheirados, tais quais os estudantes de colégio. 

(Voltarei ao assunto) 

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NOTA

Cristina Avila, hoje com mais de 40 anos dedicados à reportagem, começou conosco, no saudoso jornal A Tribuna em Porto Velho. A provocação para ir à Zona do Baixo Meretrício deve ter inoculado em suas veias o jornalismo de vanguarda que um dia fizemos naquele diário do igualmente saudoso advogado e jornalista Rochilmer Mello da Rocha. Atualmente, Cris conclui pesquisa iniciada há mais de dez anos, a respeito do  impacto da abertura na Transamazônica nos povos indígenas; os Arara são os que mais sentiram as consequências. A BR-230 fora aberta durante o regime militar. Para compor seu livro-reportagem, ela já viajou de ônibus, pau-de-arara, balsa, naviozinho, rabeta (pequena canoa motorizada) e de Niño, que vem a ser um Uno 2001 adaptado para ser um minúsculo motorhome, no qual cabem um colchonete, um fogãozinho, uma mesinha para trabalho e um bagageiro, esse talvez o mais importante dos acessórios. Nele, vão as peças de roupa femininas, em muito boa qualidade, que recebe das amigas. Comida, já experimentou de tudo um pouco, até carne de bichos. Vem aí um baita livro. (M.C.)


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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).



A noite era uma criança no trevo do Roque

A noite era uma criança no trevo do Roque

MONTEZUMA CRUZ*

Reginaldo Rossi

Boêmios e demais criaturas que frequentavam a noite da Capital rondoniense desfrutavam de excelentes casas noturnas entre as décadas de 1960 e 1970. O Seresteiro, de Valter Bártolo, reunia a nata de seletos cantores e grupos de admiradores. Destaco um dos capítulos do meu livro “Território dourado” 👇 

O saudoso empresário conhecido por Pedrão foi ao mesmo tempo proprietário do lendário Restaurante Tucunaré e da Boate Cambuquira, providencialmente em frente ao primeiro na Rua Brasília. O ambiente à meia-luz, bem privê, ostentava luxuosos sofás, pufes; gentis garçons serviam batidas, cervejas e refrigerantes.

Algumas boates porto-velhenses atravessaram longos anos em atividades, outras fecharam as portas abrindo com outros nomes, outras desapareceram definitivamente.

Três boates no trevo do Roque eram bem conhecidas por frequentadores de Porto Velho e de outros estados: Rio Mar, Paissandu e Copacabana. Nelas aconteciam noites quentes de álcool, sexo e de amizades nascidas por imposições sociológicas, ou pela fraternidade de um prato de sopa no quiosque do Degas “plantado” na beira da rua enlameada.

Nelas o público conheceu o apogeu e a queda da zona do meretrício porto-velhense.

DJs formados na própria cidade eram seres que compreendiam bem a alma porto-velhense, talvez “introdutores ao pecado”, graças ao festival de letras escolhidas a cada noite. Mas que pecado era aquele tão envolvente e capaz de fazer mulheres amarem seus pares, e vice-versa.

A noite começava com Mon amour, meu bem, ma femme, na voz romântica e até fatal do pernambucano

Reginaldo Rossi:

Nesse corpo meigo e tão pequeno

Há uma espécie de veneno

Bem gostoso de provar

Como pode haver tanto desejo

Nos seus olhos, nos seus beijos

No seu jeito de abraçar

Essa canção se repetiria umas duas ou três vezes na mesma noite atendendo ao público retardatário que se alegrava depois das 22h sem o pagamento de qualquer couvert. Aliás, nas boates do bairro do Roque, já se adentrava pagando a conta grossa. Preliminares, só no quarto.

Trio Parada Dura

As andorinhas voltaram, e eu também voltei – cantava o jornalista corumbaense Jorcêne Martinez sempre que frequentava a boate da Anita, onde encontrava moçoilas vindas de Cuiabá, Goiânia e Rio Branco. O vaivém de mulheres que viajavam de ônibus e avião entre aquelas cidades e Porto Velho rendia anúncios classificados em jornais, hoje totalmente fora de cogitação pelo direito da mulher e implicações legais, especialmente quando se tratava de menores traficadas Brasil adentro e para o Exterior.

Ô bom barqueiro, bom barqueiro

Dá licença de embarcar

Que eu não sou marinheiro

Mas quero navegar

A música de Carlos Santos parecia um prefixo com chamamento àqueles que saíam da sopa do Degas e estacionavam em rodas de conversa na porta da Boate Riomar. 

Garçons com calça preta, camisa branca e gravata borboleta circulavam nos quatro cantos da casa. Ao lado, a Boate Paissandu concentrava muitas mulheres moradoras próximas às saídas para Ariquemes e Guajará-Mirim, todas elas muito bem distinguidas por eles e cortejadas pelos pontuais clientes.

Lucicleia, minha amiga, se assim posso chamá-la depois de tantos colóquios e tantas décadas depois, frequentava as duas. Ela tinha um filho pequeno e morava ao lado da irmã numa casa de madeira a um quilômetro da ZBM, nos fundos de uma serraria. A irmã também se prostituía toda noite.

Terezinha, moradora numa pequena casa na saída para Guajará-Mirim, atraía atenções e arrebatava corações ao entrar na porta larga da Riomar trajando um belíssimo vestido amarelo. 

Os homens se deixavam seduzir também pela profusão de cores nas roupas das damas da noite, mesmo as colorações inteiriças estilo azul turquesa com ou sem decote. Mas uma parte das mulheres seguia a “moda da época”, aquela saia brilhosa de couro, meias, botas e blusa curta amarrada no umbigo.

Fernando Mendes

Músicas lembradas neste livro são aquelas que teimam ficar na lembrança, tantas vezes foram tocadas pelos DJs das boates. Fernando Mendes, aquele jovem cabeludo mineiro que cantava Cadeira de rodas [1 milhão de cópias] também comovia os casais com A desconhecida:

Numa tarde tão linda de Sol

Ela me apareceu

Com um sorriso tão triste e olhar tão profundo

Já sofreu

Suas mãos tão pequenas e frias

Sua voz tropeçava também

Me falava da infância de lágrimas

Nunca teve ninguém

Nunca teve amor não sentiu o calor de alguém

Nem sequer ouviu a palavra carinho seu ninho, não existiu

Sinceramente eu chorei de tristeza

Ao ouvir

Tanta coisa que a vida oferece

Que a gente padece

Sem querer

A prostituição corria solta na cidade e nos garimpos Araras, Tamborete, Praia do Avião, Paredão, Embaúba, Morrinhos, Periquitos, Palmeiral, Praia do Avião, Sovaco da Velha e Vai-quem-quer alguns dos garimpos de ouro no Rio Madeira entre o final da década de 1970 e os anos 1980. 

Os michês custavam entre duzentos e quinhentos cruzeiros, e nas barracas de lona na beira do rio eram pagos em pepitas de ouro pesadas com justiça. Da mesma forma, assim eram pagos estabelecimentos comerciais e advogados. Alguns deles colocavam micro balanças sobre mesas e balcões.

Mais adiante conto mais. Rs

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).


Texto anterior - Reciclagem de vidros se impõe a Rondônia

Reciclagem de vidros se impõe a Rondônia

 Reciclagem de vidros se impõe a Rondônia

 MONTEZUMA CRUZ*

O repórter e Lucineide, no interior do depósito  da Recoop, em Rolim de Moura

Segundo o químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier, na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Pensando nisso, podemos notar que existem na Capital e no Interior de Rondônia algumas possibilidades de aplicação dessa máxima.

Vidro tem sobrando, falta recicladores em Rondônia

A exemplo de outras cidades que consomem produtos embalados em vidros, Rolim de Moura (Zona da Mata) esbanja uma “montanha” deles, pois a sua cooperativa de reciclagem (Recoop) não dispõe da prensa específica, limitando-se a trabalhar com papel, papelão e plástico.

Recentemente visitei o barracão dos cooperados catadores, constatando que o estado vem deixando escapar esse filão de negócios.

O vidro é fabricado basicamente de areia e calcário, cujas reservas no estado são para, pelo menos, duzentos anos.

A presidente da Recoop, Lucineide dos Santos Silva, relatou-me que, nas quatro viagens diárias dos dois caminhões cedidos pelo Governo de Rondônia e pela Prefeitura de Rolim, chegam também ao pátio carregamentos de vidros.

O que faz com esse material? Mais de 20 toneladas estão amontoadas no terreno ao lado do barracão da Recoop.

Esporadicamente, quando aparece algum comprador de São Paulo, a 2.479 quilômetros de distância, parte do vidro deixa a cidade para ser reciclado longe de Rondônia.

Alô Sedam, ou quem mais se dispuser a enxergar essa realidade: se o vidro for triturado na própria Zona da Mata, dezenas de famílias ganharão, a Recoop ganhará, a economia contará com um item a mais em seu movimento anual.

O ideal é triturar para não perder, moer para não poluir o ambiente com mosquitos que se criam e multiplicam em garrafas, garrafões e outros vasilhames de alimento ou remédio. Não se pode desprezar esse potencial alimentado pelos catadores de Rolim, que já veem alguma renda com papelão, papel e isopor, dos quais se originam até peças de artesanato para vendas na feira, ou porta a porta.

Em 2024, consultando recente levantamento da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), este repórter apurou que o Brasil produz por ano mais de oito bilhões de unidades de vidro.

Conforme a entidade, aproximadamente 1,3 milhão de toneladas do material são colocadas no mercado nos mais variados formatos, movimentando aproximadamente R$ 120 milhões. Deste total, somente trezentas mil toneladas (quase 25%) são destinadas à reciclagem.

Entenderam, agora, que Rondônia tem a ganhar socialmente se modernizar a Recoop?

A gente ouve uma falação imensa a respeito das eleições de 2026, mas dificilmente encontra um iluminado ou uma iluminada dispostos a enxergar definitivamente que “lixo é dinheiro.” À exceção de Lucineide, essa lutadora socioambiental que engrandece a Zona da Mata.

Além de ser infinitamente reciclável, o vidro é um dos materiais mais simples e eficientes para reciclar. Entre os problemas que impedem a economia circular do vidro no País estão: a coleta seletiva ainda não consolidada em muitas cidades, e o descarte incorreto pela população.

No caso de diversas cidades do interior rondoniense, falta mesmo investidor disposto a conjugar o verbo transformar. Quem sabe, a Associação Rondoniense de Prefeitos e a Sedam possam se dar as mãos – e as cabeças também.

Se assim for, logo tudo se resolverá. 

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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).

Texto anterior - O chá da folha de coca é milenar

O chá da folha de coca é milenar

O chá da folha de coca é milenar

MONTEZUMA CRUZ*

Folhas de Coca são vendidas nas ruas, na Capital, La Paz, e em cidades bolivianas - Foto Agência Boliviana de Comunicação

Coca não é cocaína. Esta advertência está presente em um mural no centro de La Paz, Capital boliviana, constatou o jornalista Altino Machado, que decidiu passar o seu aniversário nos Andes. Há mais de 4.500 anos as folhas de coca são utilizadas por indígenas da América do Sul, principalmente em rituais religiosos. A aproximadamente 3.650 metros acima do nível do mar, La Paz possui um clima subtropical de terras altas incomum, com verões chuvosos e invernos secos.

No Brasil, onde a desinformação se junta ao preconceito, essa diferença passa despercebida em escolas, organismos policiais e, incrivelmente, dentro dos próprios governos. É assim também em outros países.

A folha de coca não é droga, mas alimento. Segundo estudos científicos, tão bom que possui boa quantidade de vitaminas e nutrientes, tendo mais cálcio que o leite, mais Vitamina A que a cenoura. Seu consumo em forma natural não causa dependência nem danos à saúde. Traz somente benefícios.

O cloridrato de cocaína, sim, é uma droga química. No entanto, notícias de grandes apreensões de cocaína ou de overdoses que levam a pessoa a óbito voltam a confundir.

“A ânsia de difamar supera a vontade de aprender”, lamenta a este repórter um funcionário da Secretaria de Justiça que estuda o comportamento de detentos punidos por tráfico.

Costumeiramente, a Polícia Militar faz campanha de prevenção ao uso de drogas nas escolas, mas evita explicações. “A cultura é boliviana, não nossa, os alunos confundiriam tudo”, comenta o mesmo servidor.

Jornalista Altino Machado viu escrito esta semana  num muro em La Paz: " Coca não é Cocaína" - Foto Facebook de A. Machado

Ainda nos anos 1980, o jornalista Nelson Townes de Castro, de Porto Velho, cobriu uma missão de marines americanos na região do Chapare – praticamente, a destruição de lavouras de coca. Ao retornar, levou um saco cheio de folhas para o Palácio Presidente Vargas (ainda sede do Governo de Rondônia), e na sala do cafezinho uma bondosa zeladora preparou o chá.

Servido a diversos funcionários, inclusive a jornalistas, que repetiram xícaras à vontade, mesmo assim o chá segue até hoje estigmatizado.

Em 2011, visitando Cuzco e Machu Picchu, com minha filha médica, Vânia de Lourdes, observei que o chá das folhas de coca é servido no desjejum e as pessoas também podem bebê-lo nas portarias de hotéis, pensões e albergues. Bules cheios e xícaras estão sempre à disposição em mesas bem ornamentadas. Afinal, ele é tradicional das culturas andinas.

A cocaína é o principal alcaloide do arbusto Erythroxylon, lembram as pesquisadoras Luciana Signor e Maristela Ferigolo, em estudo na Unicamp. “Existem cerca de duzentas espécies, mas apenas 17 delas são utilizadas para extração de cocaína, sendo o principal gênero a Erythroxylon coca. O arbusto é encontrado ao leste dos Andes e acima da Bacia Amazônica. É cultivada em clima tropical e altitudes que variam entre 450 m e 1800 m acima do nível do mar.”

O que diz Altino

No Facebook, Altino Machado, que mora em Rio Branco (AC), comenta: “Março é um mês de renovação, e reservei a primeira semana para celebrar meu aniversário de uma maneira única: enfrentando o desafio da altitude em La Paz, a Capital mais alta do mundo.

La Paz: tradição milenar no uso da folha da coca para um chá que alimenta - Foto Altino Machado

A cidade boliviana, com seu verão chuvoso, frio e úmido, é um local emblemático para testar a resistência do corpo, da mente e do coração.

Percorri os arredores da cidade de táxi, ônibus, barco e a pé, descobrindo um entorno vasto, belo e histórico que me deixou sem fôlego. E não foi apenas a altitude que me tirou o fôlego, mas também o povo, a beleza e a riqueza cultural da região.

Os sintomas do mal da altitude foram moderados: uma leve dor de cabeça, falta de ar, cansaço e, em um único dia, formigamento nas mãos e nos pés que me fez lembrar da minha própria vulnerabilidade.

Ambulantes La Paz - Foto Altino Machado

Tudo isso debelado pelos poderes curativos da folha de coca. Aliás, vi num mural da cidade uma máxima: “Coca não é cocaína.”

Foi minha vulnerabilidade que me permitiu apreciar mais uma vez a grandiosidade de La Paz e sua gente. A Cidade do Céu, com sua mistura única de culturas e paisagens, é um lembrete de que, mesmo nos lugares mais inóspitos, há beleza e força espantosas para serem encontradas.

Infelizmente, por desinformação e preconceito, viramos as costas aos nossos hermanos. Como diz o poeta Beto Brasiliense: viemos também dos Andes.”


UM POUCO MAIS

● Entre os principais benefícios do chá destacam-se: a redução da fadiga, aumento da concentração e alívio de dores de cabeça. O chá de coca também possui propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias. No entanto, o consumo em excesso pode levar a efeitos colaterais como insônia, ansiedade, aumento da pressão arterial e dependência. 

● O cloridrato de cocaína é uma substância química que se extrai da folha de coca através de processo químico, no qual são usadas uma enorme quantidade de folhas e mais uma grande quantidade de gasolina, ácido clorídrico, entre outros produtos. O composto isolado vira droga utilizada pela indústria farmacêutica e por dependentes químicos, podendo causar vício e danos à saúde.

● Apesar de ser legal em alguns países, o chá de coca é ilegal em outros, como nos Estados Unidos, onde a Igreja Nativa obteve há décadas o direito ao uso do peiote em rituais religiosos, e as "religiões da floresta brasileira" (UDV, Santo Daime, Barquinha, entre outras), da mesma forma, com o chá ayahuasca (ou hoasca), desde a decisão histórica e unânime da Suprema Corte Americana, em 2006.

● No caso das folhas de coca, a concentração de cocaína é inferior a 1% e, dependendo da espécie, sequer ultrapassa 0,2%. Ela é o único alcaloide psicoativo da planta e, devido à baixíssima concentração, seus efeitos não são sentidos pelo simples consumo da planta em seu estado natural.

● As folhas são usadas com fins medicinais e para amenizar impactos do ar rarefeito desde tempos ancestrais. (Lory Aguiar, em "Poder dos chás para a saúde").


Texto anterior - Cientista que ajudou a Madeira-Mamoré a combater doenças endêmicas morreu infeliz (3 – final)


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*Chegou a Rondônia em 1976. Em dois períodos profissionais esteve no Acre, norte mato-grossense, Amazonas, Pará e Roraima, a serviço da Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Acompanhou a instalação do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena e a chegada dos recursos financeiros da Sudam, Polamazônia e Polonoroeste durante a elevação do antigo território federal a estado. Deu ênfase à distribuição de terras pelo Incra, ao desmatamento e às produções agropecuária e mineral. Cobriu Mato Grosso antes da divisão do estado (1974 a 1977); populações indígenas em Manaus (AM); o nascimento do Mercosul (1991) em Foz do Iguaçu, na fronteira brasileira com o Paraguai e Argentina; portos, minérios e situação fundiária no Maranhão; cidades e urbanismo em Brasília (DF).
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